CATEQUESES QUARESMAIS
Catequeses de Quaresma - 6 Setúbal, 2016
A vida – Dom Supremo da Misericórdia
(Jo 19,25-37)
Do Evangelho do Senhor Jesus
Cristo segundo
São João
São João
25 Junto
à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe,
a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas e Maria Madalena.
a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas e Maria Madalena.
26 Então,
Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava,
disse à mãe:
«Mulher, eis o teu filho!»
27 Depois,
disse ao discípulo: «Eis a tua mãe!»
E, desde
aquela hora, o discípulo acolheu-a em sua casa.
28 Depois
disso, Jesus, sabendo que tudo se tinha sido realizado,
para se
cumprir totalmente a Escritura, disse: «Tenho sede!»
29 Havia
ali uma vasilha cheia de vinagre.
Então,
ensopando no vinagre uma esponja fixada num ramo de hissopo,
chegaram-lha
à boca.
30 Quando
tomou o vinagre, Jesus disse: «Tudo está consumado.»
E,
inclinando a cabeça, entregou o espírito.
31 Como
era o dia da Preparação da Páscoa,
para evitar
que no sábado ficassem os corpos na cruz,
porque
aquele sábado era um dia muito solene,
os judeus
pediram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas
e fossem
retirados.
32 Os
soldados foram e quebraram as pernas
ao primeiro
e também ao outro que tinha sido crucificado juntamente.
33 Mas,
ao chegarem a Jesus, vendo que já estava morto,
não lhe
quebraram as pernas.
34 Porém,
um dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança
e logo
brotou sangue e água.
35 Aquele
que viu estas coisas é que dá testemunho delas
e o seu
testemunho é verdadeiro.
E ele bem
sabe que diz a verdade, para vós crerdes também.
36 É
que isto aconteceu para se cumprir a Escritura, que diz:
Não
se lhe quebrará nenhum osso.
37 E
também outro passo da Escritura diz:
"Hão-de
olhar para aquele que trespassaram".
Palavra da Salvação.
VI A Vida – Dom Supremo da Misericórdia (Jo 19,25-37)
Introdução
Estamos a
encerrar este ciclo de Catequeses Quaresmais, já no ambiente da
celebração das festas da Páscoa. É o ambiente apropriado para entender
o que significa a Misericórdia de Deus, o dom e os desafios que ela nos
endereça. Nesta festa maior da nossa fé, contemplamos o agir de Deus ao longo
da história humana. E podemos chegar todos à conclusão do Salmo 136, que a
razão do seu agir é a sua ternura, o seu amor misericordioso para com a
humanidade: "porque é eterna a sua misericórdia".
Foi este salmo que Jesus rezou com os discípulos, no fim da última ceia com
eles, antes de se encaminhar para a sua paixão, morte e ressurreição.
Ao
longo das cinco reflexões passadas, centrámo-nos na revelação da
misericórdia de Deus revelada na pessoa de Jesus, na sua palavra e sobretudo
nos seus gestos. Neles descobrimos o Coração de Deus, que vem ao encontro de
cada pessoa, do seu povo e de toda a humanidade, atento e misericordioso
particularmente para com aqueles que são mais frágeis e vítimas de
descriminação, abandono e injustiça. Nas imagens do pai misericordioso, do
samaritano solidário para além de todas as fronteiras, na lavagem dos pés em
atitude de serviço afetuoso, na partilha e multiplicação do pão e da vida,
fomos descobrindo traços do Coração do Senhor Jesus e uma proposta do perfil de
pessoa humana segundo o projeto do Evangelho.
Concluímos
hoje estas reflexões concentrando a nossa atenção no ponto culminante
e decisivo da vida de Jesus: o dom total da sua vida, em obediência e
identificação com o desígnio misericordioso do Pai e em solidariedade próxima e
total com a humanidade frágil e incapaz de vida em plenitude. A conclusão desta
vida com o dom do Espírito constitui a revelação suprema da misericórdia
divina, que transforma a pessoa humana e lhe permite participar na vida de Deus,
colaborando, à imagem de Jesus, na construção de uma humanidade nova.
1. Confrontados com a cruz de Jesus
Com o
Domingo de Ramos que estamos a celebrar, dá-se início à Semana Santa,
a celebração da Paixão, morte e Ressurreição do Senhor. É a festa maior do
calendário cristão, herdado já da tradição judaica e celebrada por Jesus,
imediatamente antes da sua paixão. Se é verdade que é uma festa da alegria, da
primavera, da renovação da vida, a Páscoa comporta igualmente uma dimensão de
sofrimento e de morte, que a nossa liturgia celebra, particularmente na quinta
e sexta-feira santa.
Na semana
passada, refletindo sobre o dom da Eucaristia, vimos que Jesus vive e
interpreta a sua vida, morte e ressurreição, como um dom total ao
serviço dos seus discípulos e de toda a humanidade; um dom total de si
mesmo, assegurando a sua presença constante que dá vida à comunidade. Não é
difícil de entender e aceitar o dom de amor, até ao limite da vida em favor de
alguém ou de uma causa nobre. Mas que esse dom em favor d vida tenha de passar
pelo sofrimento, a humilhação e a morte, já é mais difícil de entender,
especialmente porque o destino de Jesus se apresenta como paradigma da
existência humana, frequentemente marcada pelo sofrimento e a morte.
Não quero
apresentar uma discussão filosófica sobre este tema do sofrimento, tão antigo
como a consciência humana, mas gostaria de vê-lo a partir do caminho de Jesus
através do seu sofrimento e morte concretos. Porque é que Jesus, sendo uma
pessoa tão boa e pacífica, foi de encontro a um destino tão trágico de crueldade,
abando e morte?
Uma primeira
resposta encontra-se no próprio percurso de vida e da missão de Jesus.
Ele veio, enviado pelo Pai, com a missão específica de comunicar aos homens a
Vida de Deus e transformar a sociedade à luz desta nova dinâmica: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em
abundância" (Jo 10,10). A sua palavra, os seus gestos e as suas
ações, particularmente para com os doentes, os pecadores e os marginalizados da
sociedade, são sinais desta vida nova que Ele possui e oferece a quem dele se
aproxima. Para construir este mundo novo, Jesus propõe um caminho de libertação
das pessoas, denuncia formas de opressão, de injustiça, de corrupção, de
interpretação rigorista e desumana das leis e sobretudo da Lei de Deus. Tudo
isto lhe cria, por um lado, a admiração e estima dos mais desfavorecidos, mas,
ao mesmo tempo, a rejeição, oposição e ódio dos poderosos e daqueles que
controlam a sociedade em seu proveito e não estão interessados que se mude o
sistema que os beneficia. Os Evangelhos dão-nos conta que esta oposição foi
crescendo de tom e se tornou em perseguição aberta e em propósitos de morte.
Jesus teve
bem claro desde o início da sua missão, as dificuldade e perigos que iria
encontrar, mas, a partir do meio do seu ministério público, tornou-se muito
claro que esse confronto teria consequências mortais. Por isso, começou a
avisar os discípulos que iam para Jerusalém, que Ele ia ser entregue às
autoridades, que ia sofrer muito e ser morto, mas que havia de ressuscitar,
passados três dias. Esta consciência de Jesus quanto ao seu destino são fruto
de uma clara opção sobre o modo de levar por diante a profunda revolução eu
pretendia operar no mundo. Perante a oposição frontal e violenta das
autoridades, Jesus tinha três hipóteses:
·
A mais simples era desistir do seu
projeto de dar origem a uma humanidade nova. Tinha tentado, tinha dado
sinais claros da sua proposta de vida nova e de uma sociedade segundo o projeto
de Deus, mas, já que os poderosos ponham em cheque a sua vida, era melhor
retirar-se. Mas isso, Jesus não queria, não podia fazer. Seria uma opção cómoda
e segura, mas representaria uma completa infidelidade a Deus que o tinha
enviado e aos homens que ama. Jesus não vai desistir de cumprir o desígnio de
amor do Pai, seja a qual for o preço dessa fidelidade e desse amor.
·
O segundo caminho seria o de responder à
violência, com a força e a revolta armada. É o caminho que tomam
normalmente as revoluções. Jesus tinha mostrado que dispunha de poder e os
discípulos e muitos outros dos seus adeptos esperavam que Ele fizesse uso da sua
força divina para vencer os inimigos e impor a justiça e o Reino de Deus, o
reinado dos justos. Mas esse caminho, Jesus não o pode tomar, pois seria
contradizer radicalmente o projeto do Pai. Seria voltar ainda à lei do mais
poderoso que impõe o seu domínio sobre os vencidos. Seria continuar a lei da
violência, da guerra, da divisão e do ódio, mesmo que fosse por boas razões.
Não, esse é o caminho que Jesus sempre denunciou como o que mais se opõe ao
desígnio do Pai e não o vai tomar.
·
Então, se Jesus não desiste nem se retira, se
não toma o caminho da luta armada e da violência, ficará à mercê dos poderosos.
Deverá pagar Ele o preço da sua revolução. No caminho para o
mundo novo há sangue, mas não é o sangue dos inimigos vencidos; é o sangue
daquele que ofereceu conscientemente a sua vida, para denunciar a violência e
dar origem a um caminho novo de autêntica justiça.
A primeira
razão do sofrimento e da morte de Jesus é, pois, a fidelidade absoluta
ao amor: ao amor ao Pai e ao amor pelo homens. Por esse amor feito de
misericórdia, mesmo para com aqueles que o perseguem, Jesus coloca-se na
disposição de aceitar as dificuldades que a oposição lhe trás, recusando a via
da violência, do ódio, da vingança, que sempre destruíram a humanidade. Deus
não tem inimigos. Mesmo aqueles que se lhe opõem, que o torturam e crucificam
são suas criaturas, seus filhos e Ele sempre espera que regressem.
A morte de
Jesus é, por isso, a maior denúncia da violência, da guerra, do ódio,
da vingança. Esse é o tipo de atitudes individuais e sociais que
deturpam o relacionamento humano entre as pessoas, causam injustiça, miséria,
guerra, destruição, sofrimento e morte. Esse é ainda o princípio da lei da
selva, da lei da seleção das espécies, segundo o princípio do mais forte, que
não se preocupa com a injustiça, a iniquidade e o sofrimento dos mais fracos.
Essa é a única lógica que as autoridades judaicas e Pilatos compreendem: a
lógica do poder e da violência. É essa lógica que Jesus recusa e denuncia: "Se o meu reino fosse deste mundo, os meus soldados teriam
lutado para que eu não fosse entregue…" (Jo, 18,36).
Renunciar à
violência não significa renunciar a mudar a sociedade, a combater a injustiça,
a lutar por um mundo melhor. Jesus não desiste da sua revolução,
não se acomoda à corrupção e, sobretudo, não esquece aqueles que são vítimas de
opressão e injustiça, ou sofrem sob o peso da vida, da doença, da indiferença
dos outros. A sua atitude não é de comodismo, de falta de iniciativa, de
resignação ou acomodação diante dos poderosos. Pelo contrário, a sua é
uma atitude de total solidariedade para com os mais débeis, pelos que
sofrem e aspiram a um mundo melhor. Em defesa deles, Jesus expõe-se, com total
liberdade e generosidade, oferecendo a própria vida. Mas fá-lo, por amor e com
misericórdia. Não ficou longe, mas aproximou-se da humanidade ferida, como o
samaritano do homem caído à beira da estrada, suportou as consequências da
nossa violência, corrupção e injustiça submetendo-se aos nossos dramas, para
nos libertar deste ciclo infernal de vingança, sofrimento e morte.
Por isso,
só aparentemente se pode designar a atitude de Jesus como a de um condenado,
humilhado, derrotado. Ele sabe que a sua vida está nas mãos do Pai, que nunca o
esquece. Aparentemente é um vencido, mas, na realidade, é Ele que está
abrindo caminhos novos para a humanidade; caminhos de vida, mesmo
através da injustiça, do sofrimento e da morte. Quantas pessoas fizeram assim o
caminho da libertação de si próprias e dos seus semelhantes: pensemos em
Francisco de Assis, em Mahatma Gandhi, em Luter King, em Nelson Mandela, entre
tantos outros.
É
importante que aprendamos a fazer evoluir a humanidade de um modo novo,
se queremos construir uma sociedade mais justa, mais humana e mais misericordiosa.
A cruz de Cristo representa o estandarte desta nova revolução da humanização,
da Misericórdia, do amor. Não basta sentir, indignar-se, revoltar-se, dispor-se
a lutar. É preciso fazê-lo com amor solidariedade e misericórdia, de contrário
reentramos no ciclo vicioso do terrorismo fanático e dos bombardeamentos para
impor a ordem, cujo resultado final é o de milhares de mortes inocentes,
cidades arrasadas e multidões de refugiados sem proteção, que todos, com razões
populistas se refusam acolher. Esta é a primeira e importantíssima lição da
paixão e morte de Jesus que assume em si o sofrimento de todos os deserdados da
humanidade e nos leva a refletir sobre o seu destino: como é que chegámos a
este nível de desumanização?
2. A Hora da Glória de Jesus e o Dom do Espírito
Mudar a
lógica da humanidade e fazer emergir esse mundo novo – passar da lei da selva
para a lei da humanidade e da misericórdia – não é apenas uma questão de
mudança de paradigmas sociais e nem apenas a imitação do comportamento de
Jesus, embora isso seja absolutamente necessário. É algo de muito mais
profundo, é a consequência do dom supremo da misericórdia de Deus, o dom do
Espírito, que muda a pessoa humana a partir da sua raiz. Esse dom do Espírito é
fruto da morte e ressurreição de Jesus. É por isso que a sua é uma morte
salvadora. É esse dom que encontramos na leitura com que começámos esta
reflexão. Procuremos entendê-la com alguns pontos fundamentais do quarto
Evangelho.
O
evangelista João, desde o início do seu Evangelho, vai dizendo que chegará a "Hora"
de Jesus, em que Ele manifestará a sua glória. Nas bodas de Caná, Jesus diz a
sua mãe: "Ainda não chegou a minha hora"
(Jo 2,4) e, como sinal e anúncio dessa hora, transforma a água em vinho. À
mulher de Samaria afirma que "vai chegar a hora
em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade" (4,21.23).
Aos judeus promete que "vai chegar a hora em que
os mortos escutarão a voz do Filho do Homem… vai chegar a hora em que os que
estão no sepulcro escutarão a sua voz " (Jo 5,25.28). O evangelista
observa, que, nas controvérsias com os judeus, "ninguém
lhe deitou as mãos, porque não tinha chegado a sua hora" (Jo
7,30;8,20). Mas, ao chegar a paixão, na ceia com os discípulos, João diz que
Jesus está bem consciente de que, agora chegou a "Hora": "Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a
hora de passar deste mundo para o Pai…" (Jo 13,1). Jesus mesmo
assume solenemente esta "Hora": "Chegou
a hora de o Filho do Homem ser glorificado… Que direi? Pai salva-me desta
hora?... mas para esta hora é que eu vim ao mundo" (12,23. 27); "Pai, chegou a hora. Glorifica o teu Filho, para que o
teu Filho Te glorifique a Ti" (17,1). A "Hora" é, pois, a
hora da morte.
Para Jesus,
esta é a Hora da Glória, pois, na Bíblia, a glória de uma
pessoa é a manifestação daquilo que ela é na verdade de si mesma. Ora, o ser de
Deus, diz o evangelista João, é amor: "Deus é amor"
(1Jo, 3,23; 4,4). E a manifestação suprema do amor de Deus é o dom que Jesus
faz da sua vida pelos homens, aceitando mesmo o sofrimento e a morte, para lhes
transmitir a vida. Essa é a manifestação suprema do amor, a manifestação da
glória de Deus. Por isso esta é a "Hora da Glória", porque é a hora
da passagem de Jesus para o mundo glorioso de Deus, porque é a hora do dom do
Espírito do Pai à humanidade, porque é através de tudo isto que Ele abre, para
todos nós, um caminho novo, para além da nossa debilidade, do nosso sofrimento,
da nossa morte; um caminho que nos torna filhos e filhas de Deus que não morre.
Esta é
a Hora da Glória, porque é a hora da manifestação suprema do amor e da
misericórdia de Deus através de Jesus. Ele não nos salvou porque
sofreu muito. Salvou-nos porque nos amou com amor infinito, porque esse amor se
transformou em misericórdia, perante a nossa fraqueza, os nossos erros, o nosso
pecado. Salvou-nos porque nos regenerou pelo dom do Espírito, associando-nos ao
ser e à família do Pai do céu. É isso que o evangelista João narra no texto que
proclamámos no início da nossa reflexão e que agora vamos repassar, nos seus
momentos principais.
3. A revelação do dom do Espírito
São João
narra este último momento da vida de Jesus como se fosse a re-criação
do ser humano, o início de uma nova humanidade. Esta humanidade deve
acabar com as distinções entre os homens, pois as promessas feitas aos judeus,
vão ser estendidas a toda a humanidade, com o dom do Espírito. Por isso João dá
um grande relevo às palavras de Jesus à sua mãe, que representa o povo de
Israel e o discípulo que representa a Igreja, a comunidade de Jesus: "Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que
Ele amava, disse à mãe: 'Mulher, eis o teu filho!' Depois, disse ao discípulo:
'Eis a tua mãe!' E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a em sua casa"
(Jo 19,26s). Das duas comunidades, Jesus faz uma só, sem distinções, pois todos,
a partir de agora, vão renascer a partir do Espírito que Ele vai derramar sobre
os homens e mulheres desta terra. Todos vão formar uma única família no
Espírito do mesmo Pai, o Pai de Jesus.
"Depois disso, Jesus, sabendo que tudo se tinha sido
realizado, para se cumprir totalmente a Escritura, disse: 'Tenho sede!'".
A sede de Jesus não é simplesmente uma necessidade física de
água. Por isso nota João que esta exclamação é para se cumprir totalmente a Escritura.
Isto é, Jesus afirma que tudo está consumado, que realizou na terra tudo o que
o Pai lhe mandara e manifestara a Sua Glória-Amor aos discípulos. Mas, falta
ainda uma parte importante da Escritura para se realizar, que será o dom do
Espírito. Quando isso se der, Jesus estará já morto, mas, nesta "Hora",
Ele afirma a sua sede dessa água viva que jorrará para dar a vida que não
acaba. Essa é a água que Ele prometera à Samaritana: "Quem
beber dessa água nunca mais terá sede. A água que Eu lhe der há de tornar-se
nele em fonte de água para a vida eterna" (Jo 4,14). É essa água
que Jesus anuncia com a sua sede, a água que há de saciar a aspiração de vida
de cada pessoa e que só o Pai pode dar. Sem ela, a obra de Jesus não estaria
completa. Sem o dom do Espírito, Jesus teria sido uma pessoa extraordinária,
teria dado um exemplo inigualável de humanidade, mas não teria trazido nada de
realmente significativo para a humanidade, pois continuaríamos sujeitos à
debilidade, própria da nossa natureza, limitados pelo muro intransponível do
sofrimento e da morte. Na sede de Jesus, manifesta-se a sede de vida e de
felicidade de toda a humanidade, ao longo de todos os séculos. Na sua morte,
Ele assume a morte de cada um de nós e na sua sede dirigida ao Pai, aponta a
água que saciará o desejo de todos os que sofrem, agonizam e sentem fugir a
vida, acreditem ou não que a sua sede pode ser saciada.
Ao grito de
Jesus, os soldados respondem oferecendo vinagre: "ensopando no vinagre uma esponja fixada num ramo de
hissopo, chegaram-lha à boca". O contraste é evidente, mas não quer
ser simplesmente emocional, pondo em confronto a totalidade do amor, com a
amargura do vinagre. Na realidade, o gesto dos soldados era um gesto de
misericórdia. Essa era a bebida que eles próprios tomavam para matar a sede. Mas,
mesmo neste gesto de misericórdia para com Jesus moribundo se manifesta que,
perante o domínio universal da morte, todos os paliativos humanos são amargos e
ineficazes.
Depois de
receber o vinagre dessa magra consolação e de ter anunciado o dom do Espírito,
Jesus pode então afirmar que "tudo está
consumado"; que realizou a obra que o Pai lhe
tinha confiado. E, diz João, "inclinando a cabeça, entregou o
espírito". Esta expressão abre-nos à compreensão do sentido da
morte de Jesus. Não é simplesmente uma forma de dizer que "morreu",
embora aluda também a esse terminar da vida na terra. Jesus entregou o espírito
– a sua vida – nas mãos do Pai, pois concebe a morte humana como o colocar nas
mãos de Deus a existência que se recebeu ao nascer. A vida humana não está destinada
a acabar no nada, pois, nas mãos de Deus ela continua, e continua em plenitude.
Mas o "entregou o Espírito" tem também um outro
significado que se destina a nós. Jesus entregou o "Espírito" – o
Espírito Santo – pois esse mesmo Espírito vai ser derramado agora
sobre a humanidade como novo princípio de vida. Este é o último e determinante
dom da misericórdia de Deus, o legado fundamental de Jesus à sua comunidade. É
através deste Espírito que nos tornamos filhos/as de Deus, membros da sua
família e participantes da sua vida. É este o princípio da salvação, já nesta
terra e para a eternidade.
É este dom
para a humanidade que João contempla, quando um soldado trespassa o
peito de Jesus, certificando-se que esteja já morto: "um
dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e
água". O evangelista atribui um grande significado a este facto e
cita duas vezes a Escritura, para sublinhar o seu significado. Jesus estava já
morto; uma morte que significa um dom total de amor, em obediência ao Pai e por
amor total aos homens. O sangue e a água, são sinal da vida e do Espírito.
Neste último gesto de Jesus sobre a terra, abre-se o seu Coração e revela-se a
totalidade do seu amor fiel ao Pai e aos homens. Mas é um amor que se torna
fonte de vida para a humanidade simbolicamente reunida aos pés da cruz. É a
oferta final e radical do amor transformado em misericórdia. Ao vinagre acerbo
do sofrimento e da morte, Jesus responde com o dom do amor e da vida, fonte do
Espírito que gera uma humanidade nova.
4. Aos pés da cruz de Jesus
Aos pés da
cruz, compreendemos muitas coisas sobre a vida de Jesus e
sobre a nossa própria existência. Jesus não é apenas um Mestre admirável e
sábio, um revolucionário extraordinário e comprometido, um amigo solidário dos
homens, especialmente daqueles que sofrem, o sonhador de uma humanidade melhor.
Ele é tudo isso e há que voltar constantemente às suas palavras e atitudes para
encontrar inspiração e caminho para o nosso mundo. Mas Ele é bem mais do que
isso. É Aquele que vem de junto do Pai, que traz uma vida nova, que nós não
possuíamos e sem a qual ficaríamos sempre prisioneiros do sofrimento, do pecado
e da morte.
Mesmo o
mais justo dos humanos, mesmo os atos mais meritórios, por si só não seriam
suficientes para nos subtrair à caducidade da nossa natureza humana. O
nosso código genético não nos permite viver para sempre nem nos dá uma
sabedoria e uma justiça perfeitas. Para tal, temos necessidade de outro
princípio vital de "um gene diferente", que não pertence à realidade
deste mundo. João Batista exprime essa realidade ao dizer que o máximo que pode
fazer é praticar um batismo de água para o arrependimento do mal e a busca de
novos caminhos, mas que isso é insuficiente: "eu
batizo-vos em água, mas, no meio de vós, encontra-se aquele que vós não
conheceis… ele é o que batiza no Espírito Santo" (1,26ss). E
acrescenta: "Vi o Espírito descer do céu como
uma pomba e permanecer sobre ele. Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a
batizar em água tinha-me dito: 'Aquele sobre quem vires descer o Espírito e
nele permanecer, esse é o que batiza no Espírito Santo'. Eu vi e testemunho que
este é o Filho de Deus" (Jo 1,32-34). Jesus é igualmente claro a
este respeito: "Em verdade, em verdade te digo:
quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que
nasceu da carne é carne o e o nasceu do Espírito é espírito (Jo, 3,3.6).
A esta luz
entendemos que o dom fundamental, o ato de misericórdia primordial
para completar a obra da criação é o dom do Espírito. E o Espírito não é uma
conquista, mas um dom do amor e da misericórdia de Deus. É porque Jesus vive
desse Espírito que faz as obras de Deus e se entrega em favor da humanidade até
oferecer a própria vida. A lança que abre o seu Coração – o último gesto da
crueldade humana – revela paradoxalmente a grandeza do amor de Deus, que vem ao
encontro da nossa fraqueza. Quando se fala da misericórdia de Deus, temos de
ter em conta, antes de mais que ela é, acima de tudo o dom do seu Espírito, que
brotou do Coração de Jesus.
Conclusão
Esse é o
Espírito que recebemos no batismo, que nos torna filhos e filhas de
Deus e irmãos e irmãs, formando uma comunidade nova, a Igreja, que não conhece
barreiras de raça, cultura, nacionalidade ou proveniência social. Esse é o
projeto de Deus para a humanidade inteira. Esse é o nosso projeto, hoje, nesta
nossa Igreja de Setúbal. Nós nascemos deste dom do Senhor ressuscitado, somos
da família de Deus, que nos olha com carinho, mesmo nas situações difíceis da
nossa vida; que é misericordioso, mesmo quando ficámos longe e traímos o seu
amor.
Esse é o
Espírito que brota do Coração de Jesus na cruz e modela o nosso coração,
ensinando-nos a ser filhos/as de Deus, unidos a Ele com gratidão e alegria.
Ensinando-nos a ser irmãos/ãs ativos e misericordiosos, como foi Jesus,
empregando as próprias energias e a vida na construção de um mundo melhor.
Ensinando-nos a estar particularmente ao lado dos mais pobres, como samaritanos
solidários para com os que sofrem, são vítimas da injustiça e perdem a
esperança. Ensinando-nos a não ter medo de oferecer a nossa vida e as nossas
energias, para multiplicar a vida neste mundo e deixá-la confiadamente nas mãos
misericordiosas do Pai.
Aos pés da
cruz somos desafiados a fazer escolhas de caminho e de vida.
Qual o princípio que norteia a nossa existência: a lei da selva, da seleção das
espécies, da vitória dos mais fortes (que não quer dizer dos melhores), que
exclui e cilindra os mais pequenos e débeis; ou queremos adotar a lei da
misericórdia, do dom, da solidariedade? Queremos tomar o caminho da violência,
da vingança, da guerra e da morte; ou assumimos a via do perdão, da
reconciliação, mesmo para os agressores, transformando as situações de guerra e
de morte em viveiros de reconciliação, de misericórdia e de vida?
Aos pés da
cruz de Jesus, somos convidados a assumir uma atitude pessoal, coerente e
criativa, que propõe o evangelista João ao contemplar a fonte da vida:
Hão de olhar para aquele que trespassaram.
E olhando,
havemos de ver o resultado da crueldade, da violência, da morte
em que
tantas vezes participámos.
Mas havemos
de ver também o sinal por excelência do amor,
a fonte do
perdão da misericórdia, da vida.
Catequeses Quaresmais verdadeiras
Escolas de Fé!
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