quarta-feira, 26 de outubro de 2016
sábado, 22 de outubro de 2016
Encerramento do Triénio 2013-2016
O Senhor D. José Ornelas presidiu ao encerramento do Triénio 2013-2016 da Escola da Fé. A data escolhida foi o dia 18 de Junho de 2016, e o lugar foi o Auditório da Cúria Diocesana.
O Grupo "Sons da Amizade" começaram a animar o convívio pelas 20h00, com cantares alentejanos, e o jantar que se seguiu proporcionou momentos de franca e alegre fraternidade entre os presentes, que aproveitaram para reviver experiências, partilhar emoções e criar laços.
Depois do jantar, o Senhor Bispo congratulou-se com os finalistas e formadores, pela formação agora concluída que contribuiu para o esclarecimento e enraizamento das razões da sua fé, pois como referiu:"é próprio do cristão ter dúvidas. Só não as tem que está fechado em si mesmo, convencido que não há novos caminhos a percorrer". Agradeceu o empenho e dedicação desenvolvidos nos Pólos de Almada, Palmela/Sesimbra e Seixal.
O Senhor D. José, aproveitou a ocasião para anunciar que não se irá dar inicío a um novo ciclo de formação no ano lectivo 2016/2017, antes será um tempo de reflexão sobre o modelo da Escola da Fé a ser proposto à Diocese no futuro.
Antes do encerramento os finalistas receberam os seus diplomas e uma medalha com o símbolo da Escola da Fé. Deram graças a Deus pelos bons frutos da formação, fizereram um brinde. Por fim, despediram-se alegres, confiantes e conscientes de que o percurso não acabou, pelo contrário, ainda agora começou.
Parabéns a todos e votos de todo o Bem!
Alguns momentos do Encerramento
segunda-feira, 4 de abril de 2016
Domingo da Divina Misericórdia
Homilia do Papa Francisco
«Muitos outros sinais miraculosos realizou
ainda Jesus, na presença dos seus discípulos, que não estão escritos neste
livro» (Jo 20, 30). O Evangelho é o livro da misericórdia de Deus, que havemos
de ler e reler, porque tudo o que Jesus disse e fez é expressão da misericórdia
do Pai. Nem tudo, porém, foi escrito; o Evangelho da misericórdia permanece um
livro aberto, onde se há de continuar a escrever os sinais dos discípulos de
Cristo, gestos concretos de amor, que são o melhor testemunho da misericórdia. Todos
somos chamados a tornar-nos escritores viventes do Evangelho, portadores da Boa
Nova a cada homem e mulher de hoje. Podemos fazê-lo praticando as obras
corporais e espirituais de misericórdia, que são o estilo de vida do cristão. Através destes gestos
simples e vigorosos, mesmo se por vezes invisíveis, podemos visitar aqueles que
passam necessidade, levando a ternura e a consolação de Deus. Deste modo damos
continuidade ao que fez Jesus no dia de Páscoa, quando derramou, nos corações
assustados dos discípulos, a misericórdia do Pai, efundindo sobre eles o
Espírito Santo que perdoa os pecados e dá a alegria.
Mas,
na narração que ouvimos, aparece um contraste evidente: por um lado, temos o
medo dos discípulos, que fecham as portas da casa; por outro, temos a missão,
por parte de Jesus, que os envia ao mundo para levarem o anúncio do perdão. O
mesmo contraste pode verificar-se também em nós: uma luta interior entre o
fechamento do coração e a chamada do amor para abrir as portas fechadas e sair
de nós mesmos. Cristo, que por amor entrou nas portas fechadas do pecado, da
morte e da mansão dos mortos, deseja entrar também em cada um para abrir de par
em par as portas fechadas do coração. Ele que venceu, com a ressurreição, o
medo e o temor que nos algemam, quer escancarar as nossas portas fechadas e
enviar-nos. A estrada que o Mestre ressuscitado nos aponta é estrada de sentido
único, segue-se apenas numa direção: sair de nós mesmos, sair para testemunhar
a força sanadora do amor que nos conquistou. Muitas vezes vemos, diante de nós,
uma humanidade ferida e assustada, que tem as cicatrizes do sofrimento e da
incerteza. Hoje, face ao seu doloroso clamor de misericórdia e paz, ouçamos
como que dirigido a cada um de nós o convite feito confiadamente por Jesus:
«Assim como o Pai Me enviou, também Eu vos envio a vós (Jo 20, 21).
Cada
doença pode encontrar na misericórdia de Deus um auxílio eficaz. Com efeito, a
sua misericórdia não se detém à distância: quer vir ao encontro de todas as
pobrezas e libertar de tantas formas de escravidão que afligem o nosso mundo.
Quer alcançar as feridas de cada um, para medicá-las. Ser apóstolos de
misericórdia significa tocar e acariciar as suas chagas, presentes hoje também
no corpo e na alma de muitos dos seus irmãos e irmãs. Ao cuidar destas chagas,
professamos Jesus, tornamo-Lo presente e vivo; permitimos a outros que palpem a
sua misericórdia, e O reconheçam «Senhor e Deus» (cf. Jo 20, 28), como fez o
apóstolo Tomé. Eis a missão que nos é confiada. Inúmeras pessoas pedem para ser
escutadas e compreendidas. O Evangelho da misericórdia, que se deve anunciar e
escrever na vida, procura pessoas com o coração paciente e aberto, «bons
samaritanos» que conhecem a compaixão e o silêncio perante o mistério do irmão
e da irmã; pede servos generosos e alegres, que amam gratuitamente sem nada
pretender em troca.
«A
paz esteja convosco!» (Jo 20, 21): é a saudação que Cristo leva aos seus
discípulos; é a mesma paz que esperam os homens do nosso tempo. Não é uma paz
negociada, nem a suspensão de algo errado: é a sua paz, a paz que brota do
coração do Ressuscitado, a paz que venceu o pecado, a morte e o medo. É a paz
que não divide, mas une; é a paz que não deixa sozinhos, mas faz-nos sentir
acolhidos e amados; é a paz que sobrevive no sofrimento e faz florescer a
esperança. Esta paz, como no dia de Páscoa, nasce e renasce sempre do perdão de
Deus, que tira a ansiedade do coração. Ser portadora da sua paz: esta é a
missão confiada à Igreja no dia de Páscoa. Nascemos em Cristo
como instrumentos de reconciliação, para levar a todos o perdão do Pai, para
revelar o seu rosto de amor nos sinais da misericórdia.
No
Salmo Responsorial, foi proclamado: «O seu amor é para sempre» (118/117, 2). É
verdade, a misericórdia de Deus é eterna; não acaba, não se esgota, não se dá
por vencida diante das portas fechadas e nunca se cansa. Neste «para sempre»,
encontramos apoio nos momentos de provação e fraqueza, porque temos a certeza
de que Deus não nos abandona: permanece conosco para sempre. Demos-Lhe graças
por este amor tão grande que nos é impossível compreender. É tão grande!
Peçamos a graça de nunca nos cansarmos de tomar a misericórdia de Deus e levá-la
pelo mundo: peçamos para ser misericordiosos, a fim de irradiar por todo o lado
a força do Evangelho, para escrever aquelas páginas do Evangelho que o apóstolo
João não escreveu.
Roma, 03 de Abril de 2016.
terça-feira, 29 de março de 2016
D. José Ornelas Carvalho
Mensagem de Páscoa 2016
A
aproximar-se a conclusão do caminho quaresmal, preparamo-nos para celebrar a
festa maior das celebrações cristãs: o tríduo pascal, memorial da morte e ressurreição
do Senhor Jesus.
É um tempo
para recordar os acontecimentos fundadores da nossa fé, que continuam a
inspirar a nossa existência, a guiar o nosso caminho, a motivar o nosso
empenhamento na família, na comunidade cristã, na sociedade onde nos inserimos.
É sobretudo
um tempo de recuperar e renovar a esperança, sem ignorar os problemas
dramáticos que nos rodeiam e sem deixar-se submergir por eles. Ao celebrar a
morte do Senhor, não podemos esquecer que Ele assumiu voluntariamente o destino
de cada homem e de cada mulher, neste mundo: a injustiça dos inocentes condenados
à prisão, à miséria, ao desemprego, à via dos exilados e desprotegidos; o
sofrimento dos doentes e dos feridos nos atentados e na guerra; a solidão de
tantos anciãos abandonados; o desespero dos famintos, das crianças sem carinho,
dos que buscam em vão um lugar seguro e digno para viver. Ele assumiu tudo isso
sem se resignar ao medo ou ao comodismo, à violência ou à vingança.
Ele
experimentou tudo este drama substituindo a vingança pelo perdão, o ódio pelo
amor, a crueldade pelo carinho para com a vida, a arrogância pelo serviço, a
miséria pela partilha e multiplicação do pão, o esquecimento pela solidariedade
do samaritano que se aproxima e carrega quem foi abandonado à borda da estrada.
Não se resignou nem se poupou ao sofrimento e à morte, mas abriu através deles
um caminho para a vida, a alegria e a esperança.
Por isso
celebramos a Páscoa, sem esconder sob o tapete do comodismo ou do medo o
sofrimento e a morte, mas expondo-os ao sol do amor e do poder de Deus, com o
qual é possível construir um futuro novo e jubiloso, nesta terra e na plenitude
da vida de Deus.
Este não é
um sonho de quem não abre os olhos aos dramas do mundo, mas a teimosa esperança
de quem os assume com amor e dom de si mesmo, na certeza de que Deus, mesmo do
sofrimento, do ódio e da morte, é capaz de gerar alegria, carinho e vida.
É com a
certeza desta esperança que desejo a todos uma
PÁSCOA FELIZ, porque o Senhor Jesus ressuscitou.
José
Ornelas Carvalho
Bispo
de Setúbal
D. José Ornelas Carvalho
CATEQUESES QUARESMAIS
Catequeses de Quaresma - 6 Setúbal, 2016
A vida – Dom Supremo da Misericórdia
(Jo 19,25-37)
Do Evangelho do Senhor Jesus
Cristo segundo
São João
São João
25 Junto
à cruz de Jesus estavam, de pé, sua mãe,
a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas e Maria Madalena.
a irmã da sua mãe, Maria, a mulher de Clopas e Maria Madalena.
26 Então,
Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que Ele amava,
disse à mãe:
«Mulher, eis o teu filho!»
27 Depois,
disse ao discípulo: «Eis a tua mãe!»
E, desde
aquela hora, o discípulo acolheu-a em sua casa.
28 Depois
disso, Jesus, sabendo que tudo se tinha sido realizado,
para se
cumprir totalmente a Escritura, disse: «Tenho sede!»
29 Havia
ali uma vasilha cheia de vinagre.
Então,
ensopando no vinagre uma esponja fixada num ramo de hissopo,
chegaram-lha
à boca.
30 Quando
tomou o vinagre, Jesus disse: «Tudo está consumado.»
E,
inclinando a cabeça, entregou o espírito.
31 Como
era o dia da Preparação da Páscoa,
para evitar
que no sábado ficassem os corpos na cruz,
porque
aquele sábado era um dia muito solene,
os judeus
pediram a Pilatos que se lhes quebrassem as pernas
e fossem
retirados.
32 Os
soldados foram e quebraram as pernas
ao primeiro
e também ao outro que tinha sido crucificado juntamente.
33 Mas,
ao chegarem a Jesus, vendo que já estava morto,
não lhe
quebraram as pernas.
34 Porém,
um dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança
e logo
brotou sangue e água.
35 Aquele
que viu estas coisas é que dá testemunho delas
e o seu
testemunho é verdadeiro.
E ele bem
sabe que diz a verdade, para vós crerdes também.
36 É
que isto aconteceu para se cumprir a Escritura, que diz:
Não
se lhe quebrará nenhum osso.
37 E
também outro passo da Escritura diz:
"Hão-de
olhar para aquele que trespassaram".
Palavra da Salvação.
VI A Vida – Dom Supremo da Misericórdia (Jo 19,25-37)
Introdução
Estamos a
encerrar este ciclo de Catequeses Quaresmais, já no ambiente da
celebração das festas da Páscoa. É o ambiente apropriado para entender
o que significa a Misericórdia de Deus, o dom e os desafios que ela nos
endereça. Nesta festa maior da nossa fé, contemplamos o agir de Deus ao longo
da história humana. E podemos chegar todos à conclusão do Salmo 136, que a
razão do seu agir é a sua ternura, o seu amor misericordioso para com a
humanidade: "porque é eterna a sua misericórdia".
Foi este salmo que Jesus rezou com os discípulos, no fim da última ceia com
eles, antes de se encaminhar para a sua paixão, morte e ressurreição.
Ao
longo das cinco reflexões passadas, centrámo-nos na revelação da
misericórdia de Deus revelada na pessoa de Jesus, na sua palavra e sobretudo
nos seus gestos. Neles descobrimos o Coração de Deus, que vem ao encontro de
cada pessoa, do seu povo e de toda a humanidade, atento e misericordioso
particularmente para com aqueles que são mais frágeis e vítimas de
descriminação, abandono e injustiça. Nas imagens do pai misericordioso, do
samaritano solidário para além de todas as fronteiras, na lavagem dos pés em
atitude de serviço afetuoso, na partilha e multiplicação do pão e da vida,
fomos descobrindo traços do Coração do Senhor Jesus e uma proposta do perfil de
pessoa humana segundo o projeto do Evangelho.
Concluímos
hoje estas reflexões concentrando a nossa atenção no ponto culminante
e decisivo da vida de Jesus: o dom total da sua vida, em obediência e
identificação com o desígnio misericordioso do Pai e em solidariedade próxima e
total com a humanidade frágil e incapaz de vida em plenitude. A conclusão desta
vida com o dom do Espírito constitui a revelação suprema da misericórdia
divina, que transforma a pessoa humana e lhe permite participar na vida de Deus,
colaborando, à imagem de Jesus, na construção de uma humanidade nova.
1. Confrontados com a cruz de Jesus
Com o
Domingo de Ramos que estamos a celebrar, dá-se início à Semana Santa,
a celebração da Paixão, morte e Ressurreição do Senhor. É a festa maior do
calendário cristão, herdado já da tradição judaica e celebrada por Jesus,
imediatamente antes da sua paixão. Se é verdade que é uma festa da alegria, da
primavera, da renovação da vida, a Páscoa comporta igualmente uma dimensão de
sofrimento e de morte, que a nossa liturgia celebra, particularmente na quinta
e sexta-feira santa.
Na semana
passada, refletindo sobre o dom da Eucaristia, vimos que Jesus vive e
interpreta a sua vida, morte e ressurreição, como um dom total ao
serviço dos seus discípulos e de toda a humanidade; um dom total de si
mesmo, assegurando a sua presença constante que dá vida à comunidade. Não é
difícil de entender e aceitar o dom de amor, até ao limite da vida em favor de
alguém ou de uma causa nobre. Mas que esse dom em favor d vida tenha de passar
pelo sofrimento, a humilhação e a morte, já é mais difícil de entender,
especialmente porque o destino de Jesus se apresenta como paradigma da
existência humana, frequentemente marcada pelo sofrimento e a morte.
Não quero
apresentar uma discussão filosófica sobre este tema do sofrimento, tão antigo
como a consciência humana, mas gostaria de vê-lo a partir do caminho de Jesus
através do seu sofrimento e morte concretos. Porque é que Jesus, sendo uma
pessoa tão boa e pacífica, foi de encontro a um destino tão trágico de crueldade,
abando e morte?
Uma primeira
resposta encontra-se no próprio percurso de vida e da missão de Jesus.
Ele veio, enviado pelo Pai, com a missão específica de comunicar aos homens a
Vida de Deus e transformar a sociedade à luz desta nova dinâmica: "Eu vim para que tenham vida e a tenham em
abundância" (Jo 10,10). A sua palavra, os seus gestos e as suas
ações, particularmente para com os doentes, os pecadores e os marginalizados da
sociedade, são sinais desta vida nova que Ele possui e oferece a quem dele se
aproxima. Para construir este mundo novo, Jesus propõe um caminho de libertação
das pessoas, denuncia formas de opressão, de injustiça, de corrupção, de
interpretação rigorista e desumana das leis e sobretudo da Lei de Deus. Tudo
isto lhe cria, por um lado, a admiração e estima dos mais desfavorecidos, mas,
ao mesmo tempo, a rejeição, oposição e ódio dos poderosos e daqueles que
controlam a sociedade em seu proveito e não estão interessados que se mude o
sistema que os beneficia. Os Evangelhos dão-nos conta que esta oposição foi
crescendo de tom e se tornou em perseguição aberta e em propósitos de morte.
Jesus teve
bem claro desde o início da sua missão, as dificuldade e perigos que iria
encontrar, mas, a partir do meio do seu ministério público, tornou-se muito
claro que esse confronto teria consequências mortais. Por isso, começou a
avisar os discípulos que iam para Jerusalém, que Ele ia ser entregue às
autoridades, que ia sofrer muito e ser morto, mas que havia de ressuscitar,
passados três dias. Esta consciência de Jesus quanto ao seu destino são fruto
de uma clara opção sobre o modo de levar por diante a profunda revolução eu
pretendia operar no mundo. Perante a oposição frontal e violenta das
autoridades, Jesus tinha três hipóteses:
·
A mais simples era desistir do seu
projeto de dar origem a uma humanidade nova. Tinha tentado, tinha dado
sinais claros da sua proposta de vida nova e de uma sociedade segundo o projeto
de Deus, mas, já que os poderosos ponham em cheque a sua vida, era melhor
retirar-se. Mas isso, Jesus não queria, não podia fazer. Seria uma opção cómoda
e segura, mas representaria uma completa infidelidade a Deus que o tinha
enviado e aos homens que ama. Jesus não vai desistir de cumprir o desígnio de
amor do Pai, seja a qual for o preço dessa fidelidade e desse amor.
·
O segundo caminho seria o de responder à
violência, com a força e a revolta armada. É o caminho que tomam
normalmente as revoluções. Jesus tinha mostrado que dispunha de poder e os
discípulos e muitos outros dos seus adeptos esperavam que Ele fizesse uso da sua
força divina para vencer os inimigos e impor a justiça e o Reino de Deus, o
reinado dos justos. Mas esse caminho, Jesus não o pode tomar, pois seria
contradizer radicalmente o projeto do Pai. Seria voltar ainda à lei do mais
poderoso que impõe o seu domínio sobre os vencidos. Seria continuar a lei da
violência, da guerra, da divisão e do ódio, mesmo que fosse por boas razões.
Não, esse é o caminho que Jesus sempre denunciou como o que mais se opõe ao
desígnio do Pai e não o vai tomar.
·
Então, se Jesus não desiste nem se retira, se
não toma o caminho da luta armada e da violência, ficará à mercê dos poderosos.
Deverá pagar Ele o preço da sua revolução. No caminho para o
mundo novo há sangue, mas não é o sangue dos inimigos vencidos; é o sangue
daquele que ofereceu conscientemente a sua vida, para denunciar a violência e
dar origem a um caminho novo de autêntica justiça.
A primeira
razão do sofrimento e da morte de Jesus é, pois, a fidelidade absoluta
ao amor: ao amor ao Pai e ao amor pelo homens. Por esse amor feito de
misericórdia, mesmo para com aqueles que o perseguem, Jesus coloca-se na
disposição de aceitar as dificuldades que a oposição lhe trás, recusando a via
da violência, do ódio, da vingança, que sempre destruíram a humanidade. Deus
não tem inimigos. Mesmo aqueles que se lhe opõem, que o torturam e crucificam
são suas criaturas, seus filhos e Ele sempre espera que regressem.
A morte de
Jesus é, por isso, a maior denúncia da violência, da guerra, do ódio,
da vingança. Esse é o tipo de atitudes individuais e sociais que
deturpam o relacionamento humano entre as pessoas, causam injustiça, miséria,
guerra, destruição, sofrimento e morte. Esse é ainda o princípio da lei da
selva, da lei da seleção das espécies, segundo o princípio do mais forte, que
não se preocupa com a injustiça, a iniquidade e o sofrimento dos mais fracos.
Essa é a única lógica que as autoridades judaicas e Pilatos compreendem: a
lógica do poder e da violência. É essa lógica que Jesus recusa e denuncia: "Se o meu reino fosse deste mundo, os meus soldados teriam
lutado para que eu não fosse entregue…" (Jo, 18,36).
Renunciar à
violência não significa renunciar a mudar a sociedade, a combater a injustiça,
a lutar por um mundo melhor. Jesus não desiste da sua revolução,
não se acomoda à corrupção e, sobretudo, não esquece aqueles que são vítimas de
opressão e injustiça, ou sofrem sob o peso da vida, da doença, da indiferença
dos outros. A sua atitude não é de comodismo, de falta de iniciativa, de
resignação ou acomodação diante dos poderosos. Pelo contrário, a sua é
uma atitude de total solidariedade para com os mais débeis, pelos que
sofrem e aspiram a um mundo melhor. Em defesa deles, Jesus expõe-se, com total
liberdade e generosidade, oferecendo a própria vida. Mas fá-lo, por amor e com
misericórdia. Não ficou longe, mas aproximou-se da humanidade ferida, como o
samaritano do homem caído à beira da estrada, suportou as consequências da
nossa violência, corrupção e injustiça submetendo-se aos nossos dramas, para
nos libertar deste ciclo infernal de vingança, sofrimento e morte.
Por isso,
só aparentemente se pode designar a atitude de Jesus como a de um condenado,
humilhado, derrotado. Ele sabe que a sua vida está nas mãos do Pai, que nunca o
esquece. Aparentemente é um vencido, mas, na realidade, é Ele que está
abrindo caminhos novos para a humanidade; caminhos de vida, mesmo
através da injustiça, do sofrimento e da morte. Quantas pessoas fizeram assim o
caminho da libertação de si próprias e dos seus semelhantes: pensemos em
Francisco de Assis, em Mahatma Gandhi, em Luter King, em Nelson Mandela, entre
tantos outros.
É
importante que aprendamos a fazer evoluir a humanidade de um modo novo,
se queremos construir uma sociedade mais justa, mais humana e mais misericordiosa.
A cruz de Cristo representa o estandarte desta nova revolução da humanização,
da Misericórdia, do amor. Não basta sentir, indignar-se, revoltar-se, dispor-se
a lutar. É preciso fazê-lo com amor solidariedade e misericórdia, de contrário
reentramos no ciclo vicioso do terrorismo fanático e dos bombardeamentos para
impor a ordem, cujo resultado final é o de milhares de mortes inocentes,
cidades arrasadas e multidões de refugiados sem proteção, que todos, com razões
populistas se refusam acolher. Esta é a primeira e importantíssima lição da
paixão e morte de Jesus que assume em si o sofrimento de todos os deserdados da
humanidade e nos leva a refletir sobre o seu destino: como é que chegámos a
este nível de desumanização?
2. A Hora da Glória de Jesus e o Dom do Espírito
Mudar a
lógica da humanidade e fazer emergir esse mundo novo – passar da lei da selva
para a lei da humanidade e da misericórdia – não é apenas uma questão de
mudança de paradigmas sociais e nem apenas a imitação do comportamento de
Jesus, embora isso seja absolutamente necessário. É algo de muito mais
profundo, é a consequência do dom supremo da misericórdia de Deus, o dom do
Espírito, que muda a pessoa humana a partir da sua raiz. Esse dom do Espírito é
fruto da morte e ressurreição de Jesus. É por isso que a sua é uma morte
salvadora. É esse dom que encontramos na leitura com que começámos esta
reflexão. Procuremos entendê-la com alguns pontos fundamentais do quarto
Evangelho.
O
evangelista João, desde o início do seu Evangelho, vai dizendo que chegará a "Hora"
de Jesus, em que Ele manifestará a sua glória. Nas bodas de Caná, Jesus diz a
sua mãe: "Ainda não chegou a minha hora"
(Jo 2,4) e, como sinal e anúncio dessa hora, transforma a água em vinho. À
mulher de Samaria afirma que "vai chegar a hora
em que os verdadeiros adoradores adorarão o Pai em espírito e verdade" (4,21.23).
Aos judeus promete que "vai chegar a hora em que
os mortos escutarão a voz do Filho do Homem… vai chegar a hora em que os que
estão no sepulcro escutarão a sua voz " (Jo 5,25.28). O evangelista
observa, que, nas controvérsias com os judeus, "ninguém
lhe deitou as mãos, porque não tinha chegado a sua hora" (Jo
7,30;8,20). Mas, ao chegar a paixão, na ceia com os discípulos, João diz que
Jesus está bem consciente de que, agora chegou a "Hora": "Antes da festa da Páscoa, sabendo Jesus que chegara a
hora de passar deste mundo para o Pai…" (Jo 13,1). Jesus mesmo
assume solenemente esta "Hora": "Chegou
a hora de o Filho do Homem ser glorificado… Que direi? Pai salva-me desta
hora?... mas para esta hora é que eu vim ao mundo" (12,23. 27); "Pai, chegou a hora. Glorifica o teu Filho, para que o
teu Filho Te glorifique a Ti" (17,1). A "Hora" é, pois, a
hora da morte.
Para Jesus,
esta é a Hora da Glória, pois, na Bíblia, a glória de uma
pessoa é a manifestação daquilo que ela é na verdade de si mesma. Ora, o ser de
Deus, diz o evangelista João, é amor: "Deus é amor"
(1Jo, 3,23; 4,4). E a manifestação suprema do amor de Deus é o dom que Jesus
faz da sua vida pelos homens, aceitando mesmo o sofrimento e a morte, para lhes
transmitir a vida. Essa é a manifestação suprema do amor, a manifestação da
glória de Deus. Por isso esta é a "Hora da Glória", porque é a hora
da passagem de Jesus para o mundo glorioso de Deus, porque é a hora do dom do
Espírito do Pai à humanidade, porque é através de tudo isto que Ele abre, para
todos nós, um caminho novo, para além da nossa debilidade, do nosso sofrimento,
da nossa morte; um caminho que nos torna filhos e filhas de Deus que não morre.
Esta é
a Hora da Glória, porque é a hora da manifestação suprema do amor e da
misericórdia de Deus através de Jesus. Ele não nos salvou porque
sofreu muito. Salvou-nos porque nos amou com amor infinito, porque esse amor se
transformou em misericórdia, perante a nossa fraqueza, os nossos erros, o nosso
pecado. Salvou-nos porque nos regenerou pelo dom do Espírito, associando-nos ao
ser e à família do Pai do céu. É isso que o evangelista João narra no texto que
proclamámos no início da nossa reflexão e que agora vamos repassar, nos seus
momentos principais.
3. A revelação do dom do Espírito
São João
narra este último momento da vida de Jesus como se fosse a re-criação
do ser humano, o início de uma nova humanidade. Esta humanidade deve
acabar com as distinções entre os homens, pois as promessas feitas aos judeus,
vão ser estendidas a toda a humanidade, com o dom do Espírito. Por isso João dá
um grande relevo às palavras de Jesus à sua mãe, que representa o povo de
Israel e o discípulo que representa a Igreja, a comunidade de Jesus: "Jesus, ao ver ali ao pé a sua mãe e o discípulo que
Ele amava, disse à mãe: 'Mulher, eis o teu filho!' Depois, disse ao discípulo:
'Eis a tua mãe!' E, desde aquela hora, o discípulo acolheu-a em sua casa"
(Jo 19,26s). Das duas comunidades, Jesus faz uma só, sem distinções, pois todos,
a partir de agora, vão renascer a partir do Espírito que Ele vai derramar sobre
os homens e mulheres desta terra. Todos vão formar uma única família no
Espírito do mesmo Pai, o Pai de Jesus.
"Depois disso, Jesus, sabendo que tudo se tinha sido
realizado, para se cumprir totalmente a Escritura, disse: 'Tenho sede!'".
A sede de Jesus não é simplesmente uma necessidade física de
água. Por isso nota João que esta exclamação é para se cumprir totalmente a Escritura.
Isto é, Jesus afirma que tudo está consumado, que realizou na terra tudo o que
o Pai lhe mandara e manifestara a Sua Glória-Amor aos discípulos. Mas, falta
ainda uma parte importante da Escritura para se realizar, que será o dom do
Espírito. Quando isso se der, Jesus estará já morto, mas, nesta "Hora",
Ele afirma a sua sede dessa água viva que jorrará para dar a vida que não
acaba. Essa é a água que Ele prometera à Samaritana: "Quem
beber dessa água nunca mais terá sede. A água que Eu lhe der há de tornar-se
nele em fonte de água para a vida eterna" (Jo 4,14). É essa água
que Jesus anuncia com a sua sede, a água que há de saciar a aspiração de vida
de cada pessoa e que só o Pai pode dar. Sem ela, a obra de Jesus não estaria
completa. Sem o dom do Espírito, Jesus teria sido uma pessoa extraordinária,
teria dado um exemplo inigualável de humanidade, mas não teria trazido nada de
realmente significativo para a humanidade, pois continuaríamos sujeitos à
debilidade, própria da nossa natureza, limitados pelo muro intransponível do
sofrimento e da morte. Na sede de Jesus, manifesta-se a sede de vida e de
felicidade de toda a humanidade, ao longo de todos os séculos. Na sua morte,
Ele assume a morte de cada um de nós e na sua sede dirigida ao Pai, aponta a
água que saciará o desejo de todos os que sofrem, agonizam e sentem fugir a
vida, acreditem ou não que a sua sede pode ser saciada.
Ao grito de
Jesus, os soldados respondem oferecendo vinagre: "ensopando no vinagre uma esponja fixada num ramo de
hissopo, chegaram-lha à boca". O contraste é evidente, mas não quer
ser simplesmente emocional, pondo em confronto a totalidade do amor, com a
amargura do vinagre. Na realidade, o gesto dos soldados era um gesto de
misericórdia. Essa era a bebida que eles próprios tomavam para matar a sede. Mas,
mesmo neste gesto de misericórdia para com Jesus moribundo se manifesta que,
perante o domínio universal da morte, todos os paliativos humanos são amargos e
ineficazes.
Depois de
receber o vinagre dessa magra consolação e de ter anunciado o dom do Espírito,
Jesus pode então afirmar que "tudo está
consumado"; que realizou a obra que o Pai lhe
tinha confiado. E, diz João, "inclinando a cabeça, entregou o
espírito". Esta expressão abre-nos à compreensão do sentido da
morte de Jesus. Não é simplesmente uma forma de dizer que "morreu",
embora aluda também a esse terminar da vida na terra. Jesus entregou o espírito
– a sua vida – nas mãos do Pai, pois concebe a morte humana como o colocar nas
mãos de Deus a existência que se recebeu ao nascer. A vida humana não está destinada
a acabar no nada, pois, nas mãos de Deus ela continua, e continua em plenitude.
Mas o "entregou o Espírito" tem também um outro
significado que se destina a nós. Jesus entregou o "Espírito" – o
Espírito Santo – pois esse mesmo Espírito vai ser derramado agora
sobre a humanidade como novo princípio de vida. Este é o último e determinante
dom da misericórdia de Deus, o legado fundamental de Jesus à sua comunidade. É
através deste Espírito que nos tornamos filhos/as de Deus, membros da sua
família e participantes da sua vida. É este o princípio da salvação, já nesta
terra e para a eternidade.
É este dom
para a humanidade que João contempla, quando um soldado trespassa o
peito de Jesus, certificando-se que esteja já morto: "um
dos soldados traspassou-lhe o peito com uma lança e logo brotou sangue e
água". O evangelista atribui um grande significado a este facto e
cita duas vezes a Escritura, para sublinhar o seu significado. Jesus estava já
morto; uma morte que significa um dom total de amor, em obediência ao Pai e por
amor total aos homens. O sangue e a água, são sinal da vida e do Espírito.
Neste último gesto de Jesus sobre a terra, abre-se o seu Coração e revela-se a
totalidade do seu amor fiel ao Pai e aos homens. Mas é um amor que se torna
fonte de vida para a humanidade simbolicamente reunida aos pés da cruz. É a
oferta final e radical do amor transformado em misericórdia. Ao vinagre acerbo
do sofrimento e da morte, Jesus responde com o dom do amor e da vida, fonte do
Espírito que gera uma humanidade nova.
4. Aos pés da cruz de Jesus
Aos pés da
cruz, compreendemos muitas coisas sobre a vida de Jesus e
sobre a nossa própria existência. Jesus não é apenas um Mestre admirável e
sábio, um revolucionário extraordinário e comprometido, um amigo solidário dos
homens, especialmente daqueles que sofrem, o sonhador de uma humanidade melhor.
Ele é tudo isso e há que voltar constantemente às suas palavras e atitudes para
encontrar inspiração e caminho para o nosso mundo. Mas Ele é bem mais do que
isso. É Aquele que vem de junto do Pai, que traz uma vida nova, que nós não
possuíamos e sem a qual ficaríamos sempre prisioneiros do sofrimento, do pecado
e da morte.
Mesmo o
mais justo dos humanos, mesmo os atos mais meritórios, por si só não seriam
suficientes para nos subtrair à caducidade da nossa natureza humana. O
nosso código genético não nos permite viver para sempre nem nos dá uma
sabedoria e uma justiça perfeitas. Para tal, temos necessidade de outro
princípio vital de "um gene diferente", que não pertence à realidade
deste mundo. João Batista exprime essa realidade ao dizer que o máximo que pode
fazer é praticar um batismo de água para o arrependimento do mal e a busca de
novos caminhos, mas que isso é insuficiente: "eu
batizo-vos em água, mas, no meio de vós, encontra-se aquele que vós não
conheceis… ele é o que batiza no Espírito Santo" (1,26ss). E
acrescenta: "Vi o Espírito descer do céu como
uma pomba e permanecer sobre ele. Eu não o conhecia, mas aquele que me enviou a
batizar em água tinha-me dito: 'Aquele sobre quem vires descer o Espírito e
nele permanecer, esse é o que batiza no Espírito Santo'. Eu vi e testemunho que
este é o Filho de Deus" (Jo 1,32-34). Jesus é igualmente claro a
este respeito: "Em verdade, em verdade te digo:
quem não nascer da água e do Espírito não pode entrar no Reino de Deus. O que
nasceu da carne é carne o e o nasceu do Espírito é espírito (Jo, 3,3.6).
A esta luz
entendemos que o dom fundamental, o ato de misericórdia primordial
para completar a obra da criação é o dom do Espírito. E o Espírito não é uma
conquista, mas um dom do amor e da misericórdia de Deus. É porque Jesus vive
desse Espírito que faz as obras de Deus e se entrega em favor da humanidade até
oferecer a própria vida. A lança que abre o seu Coração – o último gesto da
crueldade humana – revela paradoxalmente a grandeza do amor de Deus, que vem ao
encontro da nossa fraqueza. Quando se fala da misericórdia de Deus, temos de
ter em conta, antes de mais que ela é, acima de tudo o dom do seu Espírito, que
brotou do Coração de Jesus.
Conclusão
Esse é o
Espírito que recebemos no batismo, que nos torna filhos e filhas de
Deus e irmãos e irmãs, formando uma comunidade nova, a Igreja, que não conhece
barreiras de raça, cultura, nacionalidade ou proveniência social. Esse é o
projeto de Deus para a humanidade inteira. Esse é o nosso projeto, hoje, nesta
nossa Igreja de Setúbal. Nós nascemos deste dom do Senhor ressuscitado, somos
da família de Deus, que nos olha com carinho, mesmo nas situações difíceis da
nossa vida; que é misericordioso, mesmo quando ficámos longe e traímos o seu
amor.
Esse é o
Espírito que brota do Coração de Jesus na cruz e modela o nosso coração,
ensinando-nos a ser filhos/as de Deus, unidos a Ele com gratidão e alegria.
Ensinando-nos a ser irmãos/ãs ativos e misericordiosos, como foi Jesus,
empregando as próprias energias e a vida na construção de um mundo melhor.
Ensinando-nos a estar particularmente ao lado dos mais pobres, como samaritanos
solidários para com os que sofrem, são vítimas da injustiça e perdem a
esperança. Ensinando-nos a não ter medo de oferecer a nossa vida e as nossas
energias, para multiplicar a vida neste mundo e deixá-la confiadamente nas mãos
misericordiosas do Pai.
Aos pés da
cruz somos desafiados a fazer escolhas de caminho e de vida.
Qual o princípio que norteia a nossa existência: a lei da selva, da seleção das
espécies, da vitória dos mais fortes (que não quer dizer dos melhores), que
exclui e cilindra os mais pequenos e débeis; ou queremos adotar a lei da
misericórdia, do dom, da solidariedade? Queremos tomar o caminho da violência,
da vingança, da guerra e da morte; ou assumimos a via do perdão, da
reconciliação, mesmo para os agressores, transformando as situações de guerra e
de morte em viveiros de reconciliação, de misericórdia e de vida?
Aos pés da
cruz de Jesus, somos convidados a assumir uma atitude pessoal, coerente e
criativa, que propõe o evangelista João ao contemplar a fonte da vida:
Hão de olhar para aquele que trespassaram.
E olhando,
havemos de ver o resultado da crueldade, da violência, da morte
em que
tantas vezes participámos.
Mas havemos
de ver também o sinal por excelência do amor,
a fonte do
perdão da misericórdia, da vida.
Catequeses Quaresmais verdadeiras
Escolas de Fé!
D. José Ornelas Carvalho
CATEQUESES QUARESMAIS
Catequeses de Quaresma - 5 Setúbal, 2016
Partilhar o Pão
(Mc 6,34-44)
CATEQUESES QUARESMAIS
Catequeses de Quaresma - 5 Setúbal, 2016
Do Evangelho do Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
34 Ao desembarcar, Jesus
viu uma grande multidão
e teve compaixão deles, porque eram como
ovelhas sem pastor.
Começou, então, a ensinar-lhes longamente.
35 A
hora já ia muito adiantada, quando os discípulos se aproximaram e disseram:
"O lugar é deserto e a hora vai
adiantada.
36 Manda-os
embora, para irem aos campos e aldeias comprar de comer."
37 Jesus
respondeu:
"Dai-lhes vós mesmos de comer."
Eles disseram-lhe:
"Vamos comprar duzentos denários de
pão para lhes dar de comer?"
38 Mas
Ele perguntou:
"Quantos pães tendes? Ide ver."
Depois de se informarem, responderam:
"Cinco pães e dois peixes."
39 Ordenou-lhes
que os fizessem sentar por grupos na erva verde.
40 E
sentaram-se, por grupos de cem e cinquenta.
41 Jesus
tomou, então, os cinco pães e os dois peixes
e, erguendo os olhos ao céu, pronunciou a
bênção,
partiu os pães e foi-os dando aos seus
discípulos, para que eles os repartissem.
E dividiu também os dois peixes por
todos.
42 Eles comeram até
ficar saciados.
43 E sobraram
ainda doze cestos com os bocados de pão e os restos de peixe.
44 Ora
os que tinham comido daqueles pães eram cinco mil homens.
Palavra da Salvação
V
A partilha do Pão
(Mc
6,34-44)
Introdução
Aproximando-nos
da conclusão deste caminho de quaresma, a reflexão deste domingo vai tentar
recolher a atitude fundamental que se encontra na base dos sinais que
considerámos ao longo das reflexões anteriores: o projeto de Deus para com a
humanidade pecadora; o amor do Pai misericordioso, que acolhe e reconcilia o filho
leviano; o samaritano solidário com o homem ferido, abandonado e sem ajuda; a
denúncia do poder opressor e a proposta do serviço na lavagem carinhosa dos
pés.
Todas estas
pedras fundamentais para a reconciliação do mundo, à luz da misericórdia de
Deus têm como base o exemplo da vida, morte e ressurreição de Jesus, dom supremo
de Deus para toda a humanidade. É um dom que se torna proposta de vida, de
partilha de recursos, qualidades e carinho, para matar a fome, eliminar a
miséria e criar um mundo novo de dignidade e solidariedade fraternas. Trata-se
de uma revolução da maneira de pensar e de agir, que tem com base a narração da
multiplicação dos pães e dos peixes, para matar a fome à multidão e se abre à
celebração da Eucaristia, presença constante e renovadora do Senhor na
comunidade dos seus discípulos. São estes dois sinais do Pão, que constituem o
centro da nossa reflexão desta tarde.
1. Para entender o texto
No
Evangelho de Marcos, a narração da multiplicação do pão insere-se numa altura
significativa da vida pública de Jesus. No início do Evangelho, a palavra e os
sinais dados por Jesus, com a cura dos doentes e a libertação daqueles que
estavam possuídos pelo espírito do mal, atrai grandes multidões
de pessoas que desejavam escutá-lo e ser curadas dos seus males.
Mas, se o seu
modo de agir suscitava alegria e nova esperança entre o povo, já para
as autoridades era causa de preocupação e de crescente oposição. O seu
modo de falar de Deus e da sua misericórdia, a sua atitude crítica para com a
imposição de práticas religiosas petrificadas pelo legalismo; a liberdade com que
interpretava a tradição dos antigos; a sua frequente companhia com marginais da
sociedade; a sua pretensão de agir em nome de Deus… apareciam como
manifestações de heresia e perigosa revolução, aos olhos daqueles que
controlavam a universo religioso e político de Israel. A oposição começa a
assumir formas sempre mais fortes, incluindo ameaças de violência e maquinações
de eliminação.
Jesus
inicia então uma nova fase da sua missão. Ele tem bem presente
que está a começar um movimento novo no seio do povo e que esse processo vai
produzir rupturas, pois muitos e sobretudo os mais poderosos não estão
interessados nessa novidade que os põe em causa. Por isso, começa a formar um
grupo independente, com aqueles que o seguem, a dedicar mais tempo à instrução
desse núcleo da sua futura comunidade e envia em missão à sua frente um
primeiro grupo de discípulos pelas povoações onde devia passar.
É neste
contexto de início de uma nova comunidade que, quando os discípulos regressam
da missão, se reúne à volta de Jesus uma grande multidão. Mas Ele,
acompanhado pelos discípulos, afasta-se num barco, de modo a conceder-lhes
algum descanso, pois "nem tinham tempo para
comer", como diz o texto. A multidão, porém, vendo para onde se
dirigia o barco, apressou-se a correr pela margem do lago e, quando o barco
chegou ao seu destino, já lá estava à espera. Diz então o texto que "Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de
compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor", mudou todos
os seus planos "e começou a ensiná-los
longamente", apesar do cansaço de todos.
É
importante reter alguns elementos deste contexto:
a) Jesus está
iniciando um caminho novo com os discípulos e é seguido por uma multidão que
procura alternativas para o sistema presente e o olha com alegria e esperança
no futuro.
b) É neste contexto
de novidade que surge o ensinamento de Jesus e a multiplicação do pão. É como
um gesto fundador, uma partida para um mundo novo.
c) Jesus está
criando um novo povo, que se formará a partir da sua palavra – "e começou a ensiná-los
longamente" – e de um gesto igualmente fundacional: a partilha
e a multiplicação do pão.
d) Tudo isto começa
com um olhar de misericórdia: "viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão deles, porque
eram como ovelhas sem pastor". Esta observação do
evangelista dá o sentido a toda a narração, explicando que aquilo que move a
ação de Jesus é a com-paixão,
isto é, o ver e assumir os problemas da multidão (da humanidade) desorientada
com se se tratasse de um rebanho que não tem pastor que dele se ocupe.
A partir
destes indícios podemos dar-nos conta de que a narração de S. Marcos não
representa simplesmente o relato de um milagre formidável de Jesus que
oferece um piquenique gratuito, para mostrar a sua grandeza e bondade. Trata-se
sim de algo muito importante para a situação de necessidade e desorientação da
multidão e que se insere no caminho para o mundo novo que ele está a iniciar.
Jesus, lançou um desafio, começou uma nova estrada; esta gente sentiu com
alegria e esperança o apelo para este novo caminho e foi à procura de Jesus.
Ele, que vinha à procura de um tempo de repouso, não se remeteu ao seu merecido
descanso, mas foi ter com eles pôs-se a ensiná-los e realizou um gesto que eles
nunca mais haviam de esquecer. Esse gesto foi narrado para nós hoje, para que
entendamos o mundo novo ao qual somos chamados. Com estas palavras de
introdução, entremos então na narração, tentando entendê-la mais de perto.
2. A Misericórdia torna-se Partilha
A narração
da multiplicação do pão começa, pois, com uma decisiva observação sobre os
sentimentos de Jesus para com a multidão: "Encheu-se
de compaixão". O ensinar longamente e a multiplicação são duas
faces da mesma moeda que é a misericórdia/com-paixão que Jesus sente para com a
multidão.
Os
discípulos estão ainda longe desta atitude e não chegam a entender na
sua inteireza as ações do Mestre. Entusiasmam-se com a novidade do seu
ensinamento, mas não chegam a ligar tudo isso com a vida concreta de todos os
dias. Essa não está incluída no "pacote" religioso. Por isso, a certa
altura, chamam a atenção do Mestre: Basta de religião, por hoje, "manda-os embora, para irem aos campos e aldeias
comprar de comer".
A resposta
de Jesus é o primeiro pilar da sua revolução: "Dai-lhes vós mesmos de comer". Esta ordem
tem a ver, antes de mais, com a com-paixão.
Ele não pode mandar embora a multidão, porque sente a fome daquela gente e
deseja que os discípulos a sintam também, que não se alienem dos problemas das
pessoas que estão à volta. Escutar a Palavra não é apenas um ato piedoso;
implica um pacto de solidariedade, de comum sensibilidade e mútua
responsabilidade. Esta solidariedade não é uma opção para os discípulos de
Jesus; é uma ordem :"Dai-lhes de comer".
A
questão do pão nunca é uma questão individual. Na perspetiva dos
discípulos, a comunidade tinha estado reunida à volta de Jesus para escutar a
palavra, mas, quando se trata do pão, "que vão
(cada um), comprar de comer". A fraternidade tem validade no setor
religioso, mas termina quando se trata das questões práticas da vida. Então,
para que serve a comunidade de Jesus? Para estómagos fartos? Jesus não quer que
a sua comunidade seja apenas um clube fechado, destinado a quem não tem
problemas. Pelo contrário, o exemplo que Ele dá é de uma atitude aberta,
solidária e disponível; um "hospital de campanha", no dizer do Papa
Francisco. A fome que mata milhões de pessoas em todo o mundo não pode deixar
de queimar o estómago de quem quer que sinta um mínimo de dignidade humana.
Particularmente quem escuta o Evangelho, como discípulo de Jesus, tem de sentir
a mesma compaixão misericordiosa do Mestre; tem de assumir um compromisso para
com as bocas, os espíritos, os corações famintos de pão, de educação, de
companhia, de afeto.
Os
discípulos sentem este apelo e dispõem-se a aceitar a ideia de Jesus, mas começam
a deitar contas e ficam desanimados: Nem 200 denários de pão (o equivalente
ao salário de 200 dias de um trabalhador) chegariam para dar um naco a cada um…
Este é o segundo patamar da revolução de
Jesus. Tanta gente desanima com a enormidade do esforço e dos custos necessários
para transformar o mundo e acabar com
miséria. Assustam-se e resignam-se à situação, por medo ou comodismo.
Jesus é
direto, concreto e, ao mesmo tempo, simples: Não perguntem quanto é preciso, vejam
quanto têm, com quanto podem contribuir: "Quantos
pães tendes? Ide ver". E, quando foram ver, verificaram que tinham "cinco pães e dois peixes". Na Bíblia, o
número 7 tem um significado simbólico de totalidade. O que a comunidade
apresenta a Jesus pode ser de dimensões reduzidas, mas é tudo quanto tem. Esse
é o contributo do grupo para a solução do problema do pão. O evangelista João
diz que é um rapazito que oferece os cinco pães e dois peixes. De qualquer
modo, a perspetiva de Jesus é muito clara: quando se trata das questões
fundamentais da vida, há que apostar até ao fundo: dar tudo. Isso não significa
ficar sem nada, significa colocar-se totalmente ao serviço de todos. O menino
ou a comunidade, perceberam que não só eles têm fome, mas toda a multidão. Em
vez de enveredar pela lógica da solução individual, da preservação dos
privilégios dos que possuem, foram pela estrada da partilha e da solidariedade
entre todos. Globalizaram a necessidade de todos para globalizar também a busca
de solução. É a partir desta abertura da percepção e do coração que o milagre
acontece.
Mas há
ainda um terceiro passo, que é decisivo na revolução do pão. Essa totalidade
partilhada da comunidade é colocada nas mãos de Jesus. Ele "levantou
os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e foi dando aos discípulos,
para que os distribuíssem". A bênção pronunciada por Jesus é a
que ainda hoje se diz ao partir do pão, à mesa, e soa mais ou menos assim:
"Bendito sejas, Senhor, Rei do universo, pelo pão que fizeste brotar da
terra para nosso alimento!". É um agradecer/bendizer a Deus pelo dom do pão,
que todos recebemos da bondade e liberalidade do Pai do céu. Recebemos de graça
este mundo com tudo o que ele contém. Aquilo que chamamos nosso é um dom de
Deus. O nosso trabalho é ainda fruto das capacidades que Deus nos deu e que
criativamente desenvolvemos. Quando se reconhece esta realidade básica,
percebemos que a questão do pão não pode ser simplesmente individual. O
"PÃO" – todos os meios de vida – são claramente dons de Deus e Ele
conta com cada um de nós para desenvolver, produzir e partilhar com a mesma
atitude generosa que Ele tem para connosco.
Este é o
sentido e o desafio do milagre do pão. Quando um grupo ou uma
comunidade olha o pão deste modo e coloca aquilo que possui nas mãos de Jesus,
ao serviço do seu projeto de solidariedade, dignidade e justiça para todos os
homens nesta terra; então não vai faltar o pão para ninguém. Se há fome e
miséria, não é porque não haja bens suficientes; é porque alguns acumulam,
monopolizam e estragam, deixando outros sem o mínimo necessário. Isto é válido
no que diz respeito ao pão para comer, à educação paras os mais novos, do
trabalho para os jovens, da saúde para os doentes, do carinho para os anciãos.
Como
família, como comunidade cristã e Igreja diocesana somos chamados a
multiplicar assim o pão para os que têm fome. Este é um empenho cheio
de consequências, na forma de ver e ordenar a própria vida, de ser honestos,
generosos e transparentes e na administração dos bens, de estar ativamente
presentes e ativos na vida da comunidade cristã, da sociedade, do mundo.
Há ainda um
detalhe que é importante. Diz o texto que todos ficaram saciados e que recolheram
12 cestos de bocados dos pães e dos peixes. Isto significa que a
comunidade não olha apenas para os seus membros, mas que alarga o próprio olhar
de misericórdia a todos os outros, fora da comunidade, que têm necessidade. A
fome, a miséria, a injustiça não têm credo, nem raça, nem nacionalidade. Têm
uma dor atroz, uma necessidade urgente, que apelam à misericórdia, à
solidariedade, à partilha.
Não nos
iludamos: se não somos capazes de partilhar com fraternidade e justiça
os bens que recebemos de Deus, não somos cristãos, não entramos na
revolução do Evangelho. A "contabilidade" diante de Deus, para
verificar a seriedade da vida não se faz com os atos religiosos, mas com a
misericórdia, a começar dos elementos fundamentais da existência: "tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me
de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir,
adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo… Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o
fizeste" (Mt 25,35ss).
A atitude
da multiplicação do pão, da alegria, da vida, não serve apenas para
matar a fome aos necessitados. Trata-se de uma revolução que inverte a
maneira de pensar. Faz passar da lógica do domínio, da ganância, do roubo, que
geram rivalidade, divisão e guerra; à mentalidade do dom, de onde brota
partilha, gratidão, solidariedade, comunidade. É o ponto de viragem para o
Coração Novo, plasmado à imagem do Coração de Cristo, para a Nova Humanidade
segundo o projeto do Evangelho.
3. O Pão, Corpo do Senhor
Na última
ceia com os discípulos, Jesus volta ao tema do pão, para revelar uma
nova dimensão do gesto de partilhar e multiplicar os dons de Deus.
Aqui, não se trata apenas de pão e peixe, do alimento necessário e quotidiano,
mas de pão e vinho, sinal de um banquete de festa. Trata-se de algo que vai
para além da simples subsistência elementar e que se abre a outras dimensões do
ser: a festa, a alegria, a celebração do passado e a alimentação do futuro, a
expressão pessoal e cultural daquilo que somos, evocamos e sonhamos. Por isso,
cada família, cada povo, cada civilização tem o seu modo de celebrar: o dia
nacional, o dia da libertação, o dia da memória, da república…
Celebrar
deste modo, não significa simplesmente recordar o passado. Ao celebrar,
nós inserimo-nos nessa mesma memória, recuperamos a energia desses
eventos do passado, de modo que continuem a iluminar e a configurar o presente
e o futuro. É neste ambiente de celebração do memorial da Páscoa, a grande
festa da libertação de Deus em favor do seu povo, que Jesus celebra a sua
última ceia com os discípulos.
Jesus
junta a este memorial do passado um novo conteúdo: a sua vida com os
discípulos, a sua morte iminente e a sua ressurreição gloriosa. Os gestos e
palavras sobre o pão e o vinho, têm em conta e exprimem tudo isto: a libertação
de Deus ao longo dos séculos, a vinda de Jesus a este mundo, a sua vida, morte
e ressurreição e a sua contínua presença futura entre os seus, até ao fim da
história humana. É por isso que a Eucaristia representa o centro e o resumo de
toda a existência cristã. Sem pretender apresentar aqui a totalidade do
mistério eucarístico, vamos tomar em consideração os seus traços fundamentais,
que se ligam com o tema da multiplicação do pão.
Durante
aquela ceia, Jesus começou por celebrar com os discípulos, o memorial
da Páscoa: a libertação do Egito, a Aliança do Sinai e todas as
libertações operadas por Deus ao longo da história, em favor do seu povo. Essa
celebração tinha como elemento central o cordeiro pascal, cujo sangue servira
para identificar e salvar os hebreus na libertação do Egito. É esta festa que
Jesus celebra, pela última vez com os seus discípulos.
Mas
acrescenta agora um novo gesto para celebrar a Nova Aliança, a
determinante obra de libertação em favor de toda a humanidade, através da sua
morte e ressurreição. Os elementos fundamentais da celebração são o pão e o
vinho, que já eram importantes na celebração da Páscoa, mas que assumem agora
um significado novo, em relação com a sua vida, morte e ressurreição.
Ao
identificar esse pão com o seu corpo – "Isto
é o meu corpo entregue por vós" – Jesus assume, antes de mais, a
dimensão do pão partilhado e multiplicado, como alimento solidário, que cria um
novo estilo de relação, uma nova comunidade. Mas vai muito mais além: aquilo
que ele oferece à multidão não é alguma coisa, um recurso, ou capacidade, mas a
sua própria pessoa, o seu corpo. Segundo o pensamento hebraico, o corpo não é
uma parte da pessoa, contraposto ao espírito ou à alma, mas designa a pessoa
toda, enquanto viva e em relação com os outros e o mundo. Ao realizar este
gesto, Jesus afirma que o seu ser nesta terra, o seu ser físico, a sua energia
e poder, o seu pensar, falar e agir, o seu modo de amar, a sua aceitação da
morte e a sua ressurreição… tudo isso é dado em favor dos discípulos e da
humanidade que eles representam. E, como Ele não é apenas um homem, mas o Filho
de Deus, esse ser divino também se torna dom para a humanidade. Foi esse ser
humano e divino que Ele ofereceu e colocou ao serviço dos mais pobres e
necessitados ao longo da vida; é esse dom que levará até às últimas
consequências na sua morte e ressurreição.
É
importante entender a relação e a superação da multiplicação do pão em
relação à Eucaristia. Por assim dizer, Jesus revê-se no dom total da
comunidade ou do menino que oferece os cinco pães e dois peixes. Ele oferece-se
totalmente e torna-se esse pão de solidariedade e generosidade de Deus para com
os homens. Essa solidariedade é fundamental para a revolução que pretende
realizar, a fim de que surja um mundo novo. Mas, também esse pão seria apenas
um paliativo, se se limitasse a alimentar o estómago, pois seria seguido ainda
de outra fome e acabaria sempre na morte. Ao dar-se a si mesmo em alimento para
nossa fome de vida, Jesus, como homem e Filho de Deus, nutre-nos de um modo
novo, com um pão que alimenta para a vida eterna. Por isso, diz: "Eu sou o pão vivo que desce do céu. Quem come deste
pão, viverá para sempre" (Jo 6,51). O que está em causa não é
apenas um esforço novo de maior solidariedade, mas o alargamento da vida
pessoal e comunitária, segundo os novos horizontes de Deus. É esse o dom que
Jesus partilha connosco, através da sua vida, morte e ressurreição. E tudo isso
é o que celebramos atualizamos e assimilamos, na celebração da Eucaristia.
No fim da
ceia, Jesus identifica o vinho com o seu "sangue derramado",
isto é, com a sua morte. O vinho é, na tradição bíblica, o sinal da alegria, da
festa, do amor fiel. Deste modo, afirma que o serviço prestado aos seus, à
humanidade, será levado até às ultimas consequências: até à morte, para gerar
vida, alegria e festa. Esse é o testemunho do amor fiel de Deus para com a
humanidade. Um amor que não se poupa, que não se detém perante qualquer
dificuldade, nem diante do sofrimento ou da morte.
Mas, como
acontece com o pão, temos que fazer uma distinção: a morte de Jesus representa,
sim, o fim da sua vida sobre esta terra, como para qualquer outro mortal. Mas,
Ele sempre falou da sua morte, não apenas como um "morrer",
mas como um "ser entregue" e como um "dar a vida".
Para Jesus, a morte representa o dom total da sua existência nesta terra, feita
um dom para a humanidade. Ele "foi entregue"
por Judas como sinal de infidelidade e traição, mas foi entregue pelo
Pai, como sinal de amor e como caminho e semente de vida nova, livre da
escravidão e da morte. Jesus faz dessa vida um dom total, que se completa até
ao seu último suspiro. O pão-corpo e o vinho-sangue são, pois, o maior dom da
misericórdia de Deus, que nos comunica a sua própria vida e nos torna seus
filhos/as em Cristo.
O
pão e o vinho são para comer e beber. Aquilo que comemos e bebemos,
torna-se nossa substância, entra a fazer parte do nosso corpo, dá-nos a energia
de que necessitamos. Comer este pão e beber este vinho, corpo e sangue do
Senhor, significa tornar nosso o seu modo de ser, como homem e como Filho de
Deus. Ao oferecer-se deste modo, Ele diz-nos: aqui vos deixo o meu modo de ser
homem, em comunhão com o Pai e com os outros, o meu modo de pensar e de agir, o
meu modo de tratar os outros, o meu coração de misericórdia e de perdão, a vida
que eu tenho e que não acaba… tudo isso vos dou, para que comais e bebais, para
que se torne a vossa energia, para que se transforme no vosso novo modo de ser.
Deste modo,
a Eucaristia é um dom e um desafio, para cada um e para a
comunidade que a celebra. É dom porque, através dela recebemos o alimento novo
que nos recria como pessoas novas, apesar das nossas debilidades e egoísmos. É
esse dom, que é a vida do Senhor, que nos transforma à sua imagem e nos une com
comunidade de filhos e filhas de Deus. Por outro lado, o convite a comer e
beber representa também um desafio a deixar-se configurar com o modo de ser do
Senhor que comungamos, a tornar-nos dom para o mundo, a partilhar o nosso pão,
o nosso tempo, as nossas capacidades, o nosso carinho e esperança, para que
outros possam entender e aceder à mesma vida de Deus.
A revolução
que começa no sinal e na atitude de partilhar e multiplicar o pão, revela-se,
na Eucaristia, como o centro da vida de cada um de nós e de toda a Igreja. Por
isso, não é questão um dever religioso a cumprir, de uma hora
semanal dada a Deus. Na celebração eucarística, nós escutamos a Palavra de
Jesus, somos por Ele acolhidos e acolhemo-nos uns aos outros; pomos nas suas
mãos o pão que Ele abençoa, multiplica e redistribui para matar a fome de
todos; abrimo-nos à sua presença, no pão
e no vinho, sinais da totalidade do seu dom em nosso favor. Tudo isso nos
alimenta, modela o nosso modos de ser e de agir, torna-nos semelhantes ao
Senhor que comungamos. Por isso, a Eucaristia é, ao mesmo tempo, o ponto de
chegada, mas igualmente o ponto de partida da revolução da multiplicação do
pão.
Conclusão
A reflexão
de hoje, conduz-nos ao centro unificador da nossa vida como
pessoas, como membros da sociedade humana, como irmãos e irmãs na fé. Esse
centro é Jesus, o Senhor, fundamento de uma vida nova, ao serviço de um mundo novo.
Ele deseja
realizar no mundo, em cada lugar e em cada geração, uma revolução que
transforme as atitudes e relacionamentos, para mudar o mundo e
abrir-nos a novos horizontes de esperança e de felicidade.
Essa
revolução começa com a escuta da palavra e a partilha do pão: o pão
para os estómagos famintos; o pão que é o fundamento da vida; o pão da saúde,
da educação, da solidariedade, do carinho, da esperança; o pão que alimenta,
até para além do sofrimento e da morte. Abrir-se para partilhar o pão com os
que precisam é a base desta revolução. Sem essa atitude de partilha, não
podemos ser chamados discípulos de Cristo. É a partilha daquilo que possuímos,
do tempo e das capacidades que temos, do carinho e da esperança que recebemos
com a fé… é esse dom de nós mesmos que constitui o primeiro testemunho do
Evangelho, a atitude nova para a construção de uma Igreja nova, de um mundo
novo.
Esta
atitude modela-se e alimenta-se continuamente na Eucaristia,
atualização da vida, morte e ressurreição do Senhor Jesus. Aí celebramos o dom
total da sua vida oferecida por nós e para nós. Comendo o seu pão, bebendo o
seu vinho – seu Corpo e seu Sangue – somos recriados à sua imagem e tornamo-nos
também dom para os irmãos/ãs e o mundo.
Por isso a
Eucaristia não pode ser separada da vida, pois é a vida que ela
pretende celebrar e transformar. Não tem sentido partilhar o pão da Eucaristia,
sem partilhar e multiplicar o pão para a multidão que tem fome. Por outro lado,
se não se aceita o pão da vida em plenitude que só Jesus nos oferece, todo o
pão que podemos repartir saberá a pouco e a vida que ele gera ficará sempre
limitada pela morte.
O
mandato de Jesus aos discípulos, de continuar a celebrar a Eucaristia
em seu nome não se refere apenas à celebração do rito, mas a receber dele o dom
da vida, com tudo o que ela contém e a fazer da nossa vida, assim transformada,
um dom para os outros. É assim que acolhemos, com coração aberto, grato e
disponível o mandato do Senhor Jesus:
Fazei isto em memória de mim!
Catequeses Quaresmais verdadeiras
Escolas de Fé!
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