CATEQUESES QUARESMAIS
Catequeses de Quaresma - 5 Setúbal, 2016
Partilhar o Pão
(Mc 6,34-44)
CATEQUESES QUARESMAIS
Catequeses de Quaresma - 5 Setúbal, 2016
Do Evangelho do Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos
34 Ao desembarcar, Jesus
viu uma grande multidão
e teve compaixão deles, porque eram como
ovelhas sem pastor.
Começou, então, a ensinar-lhes longamente.
35 A
hora já ia muito adiantada, quando os discípulos se aproximaram e disseram:
"O lugar é deserto e a hora vai
adiantada.
36 Manda-os
embora, para irem aos campos e aldeias comprar de comer."
37 Jesus
respondeu:
"Dai-lhes vós mesmos de comer."
Eles disseram-lhe:
"Vamos comprar duzentos denários de
pão para lhes dar de comer?"
38 Mas
Ele perguntou:
"Quantos pães tendes? Ide ver."
Depois de se informarem, responderam:
"Cinco pães e dois peixes."
39 Ordenou-lhes
que os fizessem sentar por grupos na erva verde.
40 E
sentaram-se, por grupos de cem e cinquenta.
41 Jesus
tomou, então, os cinco pães e os dois peixes
e, erguendo os olhos ao céu, pronunciou a
bênção,
partiu os pães e foi-os dando aos seus
discípulos, para que eles os repartissem.
E dividiu também os dois peixes por
todos.
42 Eles comeram até
ficar saciados.
43 E sobraram
ainda doze cestos com os bocados de pão e os restos de peixe.
44 Ora
os que tinham comido daqueles pães eram cinco mil homens.
Palavra da Salvação
V
A partilha do Pão
(Mc
6,34-44)
Introdução
Aproximando-nos
da conclusão deste caminho de quaresma, a reflexão deste domingo vai tentar
recolher a atitude fundamental que se encontra na base dos sinais que
considerámos ao longo das reflexões anteriores: o projeto de Deus para com a
humanidade pecadora; o amor do Pai misericordioso, que acolhe e reconcilia o filho
leviano; o samaritano solidário com o homem ferido, abandonado e sem ajuda; a
denúncia do poder opressor e a proposta do serviço na lavagem carinhosa dos
pés.
Todas estas
pedras fundamentais para a reconciliação do mundo, à luz da misericórdia de
Deus têm como base o exemplo da vida, morte e ressurreição de Jesus, dom supremo
de Deus para toda a humanidade. É um dom que se torna proposta de vida, de
partilha de recursos, qualidades e carinho, para matar a fome, eliminar a
miséria e criar um mundo novo de dignidade e solidariedade fraternas. Trata-se
de uma revolução da maneira de pensar e de agir, que tem com base a narração da
multiplicação dos pães e dos peixes, para matar a fome à multidão e se abre à
celebração da Eucaristia, presença constante e renovadora do Senhor na
comunidade dos seus discípulos. São estes dois sinais do Pão, que constituem o
centro da nossa reflexão desta tarde.
1. Para entender o texto
No
Evangelho de Marcos, a narração da multiplicação do pão insere-se numa altura
significativa da vida pública de Jesus. No início do Evangelho, a palavra e os
sinais dados por Jesus, com a cura dos doentes e a libertação daqueles que
estavam possuídos pelo espírito do mal, atrai grandes multidões
de pessoas que desejavam escutá-lo e ser curadas dos seus males.
Mas, se o seu
modo de agir suscitava alegria e nova esperança entre o povo, já para
as autoridades era causa de preocupação e de crescente oposição. O seu
modo de falar de Deus e da sua misericórdia, a sua atitude crítica para com a
imposição de práticas religiosas petrificadas pelo legalismo; a liberdade com que
interpretava a tradição dos antigos; a sua frequente companhia com marginais da
sociedade; a sua pretensão de agir em nome de Deus… apareciam como
manifestações de heresia e perigosa revolução, aos olhos daqueles que
controlavam a universo religioso e político de Israel. A oposição começa a
assumir formas sempre mais fortes, incluindo ameaças de violência e maquinações
de eliminação.
Jesus
inicia então uma nova fase da sua missão. Ele tem bem presente
que está a começar um movimento novo no seio do povo e que esse processo vai
produzir rupturas, pois muitos e sobretudo os mais poderosos não estão
interessados nessa novidade que os põe em causa. Por isso, começa a formar um
grupo independente, com aqueles que o seguem, a dedicar mais tempo à instrução
desse núcleo da sua futura comunidade e envia em missão à sua frente um
primeiro grupo de discípulos pelas povoações onde devia passar.
É neste
contexto de início de uma nova comunidade que, quando os discípulos regressam
da missão, se reúne à volta de Jesus uma grande multidão. Mas Ele,
acompanhado pelos discípulos, afasta-se num barco, de modo a conceder-lhes
algum descanso, pois "nem tinham tempo para
comer", como diz o texto. A multidão, porém, vendo para onde se
dirigia o barco, apressou-se a correr pela margem do lago e, quando o barco
chegou ao seu destino, já lá estava à espera. Diz então o texto que "Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de
compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor", mudou todos
os seus planos "e começou a ensiná-los
longamente", apesar do cansaço de todos.
É
importante reter alguns elementos deste contexto:
a) Jesus está
iniciando um caminho novo com os discípulos e é seguido por uma multidão que
procura alternativas para o sistema presente e o olha com alegria e esperança
no futuro.
b) É neste contexto
de novidade que surge o ensinamento de Jesus e a multiplicação do pão. É como
um gesto fundador, uma partida para um mundo novo.
c) Jesus está
criando um novo povo, que se formará a partir da sua palavra – "e começou a ensiná-los
longamente" – e de um gesto igualmente fundacional: a partilha
e a multiplicação do pão.
d) Tudo isto começa
com um olhar de misericórdia: "viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão deles, porque
eram como ovelhas sem pastor". Esta observação do
evangelista dá o sentido a toda a narração, explicando que aquilo que move a
ação de Jesus é a com-paixão,
isto é, o ver e assumir os problemas da multidão (da humanidade) desorientada
com se se tratasse de um rebanho que não tem pastor que dele se ocupe.
A partir
destes indícios podemos dar-nos conta de que a narração de S. Marcos não
representa simplesmente o relato de um milagre formidável de Jesus que
oferece um piquenique gratuito, para mostrar a sua grandeza e bondade. Trata-se
sim de algo muito importante para a situação de necessidade e desorientação da
multidão e que se insere no caminho para o mundo novo que ele está a iniciar.
Jesus, lançou um desafio, começou uma nova estrada; esta gente sentiu com
alegria e esperança o apelo para este novo caminho e foi à procura de Jesus.
Ele, que vinha à procura de um tempo de repouso, não se remeteu ao seu merecido
descanso, mas foi ter com eles pôs-se a ensiná-los e realizou um gesto que eles
nunca mais haviam de esquecer. Esse gesto foi narrado para nós hoje, para que
entendamos o mundo novo ao qual somos chamados. Com estas palavras de
introdução, entremos então na narração, tentando entendê-la mais de perto.
2. A Misericórdia torna-se Partilha
A narração
da multiplicação do pão começa, pois, com uma decisiva observação sobre os
sentimentos de Jesus para com a multidão: "Encheu-se
de compaixão". O ensinar longamente e a multiplicação são duas
faces da mesma moeda que é a misericórdia/com-paixão que Jesus sente para com a
multidão.
Os
discípulos estão ainda longe desta atitude e não chegam a entender na
sua inteireza as ações do Mestre. Entusiasmam-se com a novidade do seu
ensinamento, mas não chegam a ligar tudo isso com a vida concreta de todos os
dias. Essa não está incluída no "pacote" religioso. Por isso, a certa
altura, chamam a atenção do Mestre: Basta de religião, por hoje, "manda-os embora, para irem aos campos e aldeias
comprar de comer".
A resposta
de Jesus é o primeiro pilar da sua revolução: "Dai-lhes vós mesmos de comer". Esta ordem
tem a ver, antes de mais, com a com-paixão.
Ele não pode mandar embora a multidão, porque sente a fome daquela gente e
deseja que os discípulos a sintam também, que não se alienem dos problemas das
pessoas que estão à volta. Escutar a Palavra não é apenas um ato piedoso;
implica um pacto de solidariedade, de comum sensibilidade e mútua
responsabilidade. Esta solidariedade não é uma opção para os discípulos de
Jesus; é uma ordem :"Dai-lhes de comer".
A
questão do pão nunca é uma questão individual. Na perspetiva dos
discípulos, a comunidade tinha estado reunida à volta de Jesus para escutar a
palavra, mas, quando se trata do pão, "que vão
(cada um), comprar de comer". A fraternidade tem validade no setor
religioso, mas termina quando se trata das questões práticas da vida. Então,
para que serve a comunidade de Jesus? Para estómagos fartos? Jesus não quer que
a sua comunidade seja apenas um clube fechado, destinado a quem não tem
problemas. Pelo contrário, o exemplo que Ele dá é de uma atitude aberta,
solidária e disponível; um "hospital de campanha", no dizer do Papa
Francisco. A fome que mata milhões de pessoas em todo o mundo não pode deixar
de queimar o estómago de quem quer que sinta um mínimo de dignidade humana.
Particularmente quem escuta o Evangelho, como discípulo de Jesus, tem de sentir
a mesma compaixão misericordiosa do Mestre; tem de assumir um compromisso para
com as bocas, os espíritos, os corações famintos de pão, de educação, de
companhia, de afeto.
Os
discípulos sentem este apelo e dispõem-se a aceitar a ideia de Jesus, mas começam
a deitar contas e ficam desanimados: Nem 200 denários de pão (o equivalente
ao salário de 200 dias de um trabalhador) chegariam para dar um naco a cada um…
Este é o segundo patamar da revolução de
Jesus. Tanta gente desanima com a enormidade do esforço e dos custos necessários
para transformar o mundo e acabar com
miséria. Assustam-se e resignam-se à situação, por medo ou comodismo.
Jesus é
direto, concreto e, ao mesmo tempo, simples: Não perguntem quanto é preciso, vejam
quanto têm, com quanto podem contribuir: "Quantos
pães tendes? Ide ver". E, quando foram ver, verificaram que tinham "cinco pães e dois peixes". Na Bíblia, o
número 7 tem um significado simbólico de totalidade. O que a comunidade
apresenta a Jesus pode ser de dimensões reduzidas, mas é tudo quanto tem. Esse
é o contributo do grupo para a solução do problema do pão. O evangelista João
diz que é um rapazito que oferece os cinco pães e dois peixes. De qualquer
modo, a perspetiva de Jesus é muito clara: quando se trata das questões
fundamentais da vida, há que apostar até ao fundo: dar tudo. Isso não significa
ficar sem nada, significa colocar-se totalmente ao serviço de todos. O menino
ou a comunidade, perceberam que não só eles têm fome, mas toda a multidão. Em
vez de enveredar pela lógica da solução individual, da preservação dos
privilégios dos que possuem, foram pela estrada da partilha e da solidariedade
entre todos. Globalizaram a necessidade de todos para globalizar também a busca
de solução. É a partir desta abertura da percepção e do coração que o milagre
acontece.
Mas há
ainda um terceiro passo, que é decisivo na revolução do pão. Essa totalidade
partilhada da comunidade é colocada nas mãos de Jesus. Ele "levantou
os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e foi dando aos discípulos,
para que os distribuíssem". A bênção pronunciada por Jesus é a
que ainda hoje se diz ao partir do pão, à mesa, e soa mais ou menos assim:
"Bendito sejas, Senhor, Rei do universo, pelo pão que fizeste brotar da
terra para nosso alimento!". É um agradecer/bendizer a Deus pelo dom do pão,
que todos recebemos da bondade e liberalidade do Pai do céu. Recebemos de graça
este mundo com tudo o que ele contém. Aquilo que chamamos nosso é um dom de
Deus. O nosso trabalho é ainda fruto das capacidades que Deus nos deu e que
criativamente desenvolvemos. Quando se reconhece esta realidade básica,
percebemos que a questão do pão não pode ser simplesmente individual. O
"PÃO" – todos os meios de vida – são claramente dons de Deus e Ele
conta com cada um de nós para desenvolver, produzir e partilhar com a mesma
atitude generosa que Ele tem para connosco.
Este é o
sentido e o desafio do milagre do pão. Quando um grupo ou uma
comunidade olha o pão deste modo e coloca aquilo que possui nas mãos de Jesus,
ao serviço do seu projeto de solidariedade, dignidade e justiça para todos os
homens nesta terra; então não vai faltar o pão para ninguém. Se há fome e
miséria, não é porque não haja bens suficientes; é porque alguns acumulam,
monopolizam e estragam, deixando outros sem o mínimo necessário. Isto é válido
no que diz respeito ao pão para comer, à educação paras os mais novos, do
trabalho para os jovens, da saúde para os doentes, do carinho para os anciãos.
Como
família, como comunidade cristã e Igreja diocesana somos chamados a
multiplicar assim o pão para os que têm fome. Este é um empenho cheio
de consequências, na forma de ver e ordenar a própria vida, de ser honestos,
generosos e transparentes e na administração dos bens, de estar ativamente
presentes e ativos na vida da comunidade cristã, da sociedade, do mundo.
Há ainda um
detalhe que é importante. Diz o texto que todos ficaram saciados e que recolheram
12 cestos de bocados dos pães e dos peixes. Isto significa que a
comunidade não olha apenas para os seus membros, mas que alarga o próprio olhar
de misericórdia a todos os outros, fora da comunidade, que têm necessidade. A
fome, a miséria, a injustiça não têm credo, nem raça, nem nacionalidade. Têm
uma dor atroz, uma necessidade urgente, que apelam à misericórdia, à
solidariedade, à partilha.
Não nos
iludamos: se não somos capazes de partilhar com fraternidade e justiça
os bens que recebemos de Deus, não somos cristãos, não entramos na
revolução do Evangelho. A "contabilidade" diante de Deus, para
verificar a seriedade da vida não se faz com os atos religiosos, mas com a
misericórdia, a começar dos elementos fundamentais da existência: "tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me
de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir,
adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo… Sempre que
fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o
fizeste" (Mt 25,35ss).
A atitude
da multiplicação do pão, da alegria, da vida, não serve apenas para
matar a fome aos necessitados. Trata-se de uma revolução que inverte a
maneira de pensar. Faz passar da lógica do domínio, da ganância, do roubo, que
geram rivalidade, divisão e guerra; à mentalidade do dom, de onde brota
partilha, gratidão, solidariedade, comunidade. É o ponto de viragem para o
Coração Novo, plasmado à imagem do Coração de Cristo, para a Nova Humanidade
segundo o projeto do Evangelho.
3. O Pão, Corpo do Senhor
Na última
ceia com os discípulos, Jesus volta ao tema do pão, para revelar uma
nova dimensão do gesto de partilhar e multiplicar os dons de Deus.
Aqui, não se trata apenas de pão e peixe, do alimento necessário e quotidiano,
mas de pão e vinho, sinal de um banquete de festa. Trata-se de algo que vai
para além da simples subsistência elementar e que se abre a outras dimensões do
ser: a festa, a alegria, a celebração do passado e a alimentação do futuro, a
expressão pessoal e cultural daquilo que somos, evocamos e sonhamos. Por isso,
cada família, cada povo, cada civilização tem o seu modo de celebrar: o dia
nacional, o dia da libertação, o dia da memória, da república…
Celebrar
deste modo, não significa simplesmente recordar o passado. Ao celebrar,
nós inserimo-nos nessa mesma memória, recuperamos a energia desses
eventos do passado, de modo que continuem a iluminar e a configurar o presente
e o futuro. É neste ambiente de celebração do memorial da Páscoa, a grande
festa da libertação de Deus em favor do seu povo, que Jesus celebra a sua
última ceia com os discípulos.
Jesus
junta a este memorial do passado um novo conteúdo: a sua vida com os
discípulos, a sua morte iminente e a sua ressurreição gloriosa. Os gestos e
palavras sobre o pão e o vinho, têm em conta e exprimem tudo isto: a libertação
de Deus ao longo dos séculos, a vinda de Jesus a este mundo, a sua vida, morte
e ressurreição e a sua contínua presença futura entre os seus, até ao fim da
história humana. É por isso que a Eucaristia representa o centro e o resumo de
toda a existência cristã. Sem pretender apresentar aqui a totalidade do
mistério eucarístico, vamos tomar em consideração os seus traços fundamentais,
que se ligam com o tema da multiplicação do pão.
Durante
aquela ceia, Jesus começou por celebrar com os discípulos, o memorial
da Páscoa: a libertação do Egito, a Aliança do Sinai e todas as
libertações operadas por Deus ao longo da história, em favor do seu povo. Essa
celebração tinha como elemento central o cordeiro pascal, cujo sangue servira
para identificar e salvar os hebreus na libertação do Egito. É esta festa que
Jesus celebra, pela última vez com os seus discípulos.
Mas
acrescenta agora um novo gesto para celebrar a Nova Aliança, a
determinante obra de libertação em favor de toda a humanidade, através da sua
morte e ressurreição. Os elementos fundamentais da celebração são o pão e o
vinho, que já eram importantes na celebração da Páscoa, mas que assumem agora
um significado novo, em relação com a sua vida, morte e ressurreição.
Ao
identificar esse pão com o seu corpo – "Isto
é o meu corpo entregue por vós" – Jesus assume, antes de mais, a
dimensão do pão partilhado e multiplicado, como alimento solidário, que cria um
novo estilo de relação, uma nova comunidade. Mas vai muito mais além: aquilo
que ele oferece à multidão não é alguma coisa, um recurso, ou capacidade, mas a
sua própria pessoa, o seu corpo. Segundo o pensamento hebraico, o corpo não é
uma parte da pessoa, contraposto ao espírito ou à alma, mas designa a pessoa
toda, enquanto viva e em relação com os outros e o mundo. Ao realizar este
gesto, Jesus afirma que o seu ser nesta terra, o seu ser físico, a sua energia
e poder, o seu pensar, falar e agir, o seu modo de amar, a sua aceitação da
morte e a sua ressurreição… tudo isso é dado em favor dos discípulos e da
humanidade que eles representam. E, como Ele não é apenas um homem, mas o Filho
de Deus, esse ser divino também se torna dom para a humanidade. Foi esse ser
humano e divino que Ele ofereceu e colocou ao serviço dos mais pobres e
necessitados ao longo da vida; é esse dom que levará até às últimas
consequências na sua morte e ressurreição.
É
importante entender a relação e a superação da multiplicação do pão em
relação à Eucaristia. Por assim dizer, Jesus revê-se no dom total da
comunidade ou do menino que oferece os cinco pães e dois peixes. Ele oferece-se
totalmente e torna-se esse pão de solidariedade e generosidade de Deus para com
os homens. Essa solidariedade é fundamental para a revolução que pretende
realizar, a fim de que surja um mundo novo. Mas, também esse pão seria apenas
um paliativo, se se limitasse a alimentar o estómago, pois seria seguido ainda
de outra fome e acabaria sempre na morte. Ao dar-se a si mesmo em alimento para
nossa fome de vida, Jesus, como homem e Filho de Deus, nutre-nos de um modo
novo, com um pão que alimenta para a vida eterna. Por isso, diz: "Eu sou o pão vivo que desce do céu. Quem come deste
pão, viverá para sempre" (Jo 6,51). O que está em causa não é
apenas um esforço novo de maior solidariedade, mas o alargamento da vida
pessoal e comunitária, segundo os novos horizontes de Deus. É esse o dom que
Jesus partilha connosco, através da sua vida, morte e ressurreição. E tudo isso
é o que celebramos atualizamos e assimilamos, na celebração da Eucaristia.
No fim da
ceia, Jesus identifica o vinho com o seu "sangue derramado",
isto é, com a sua morte. O vinho é, na tradição bíblica, o sinal da alegria, da
festa, do amor fiel. Deste modo, afirma que o serviço prestado aos seus, à
humanidade, será levado até às ultimas consequências: até à morte, para gerar
vida, alegria e festa. Esse é o testemunho do amor fiel de Deus para com a
humanidade. Um amor que não se poupa, que não se detém perante qualquer
dificuldade, nem diante do sofrimento ou da morte.
Mas, como
acontece com o pão, temos que fazer uma distinção: a morte de Jesus representa,
sim, o fim da sua vida sobre esta terra, como para qualquer outro mortal. Mas,
Ele sempre falou da sua morte, não apenas como um "morrer",
mas como um "ser entregue" e como um "dar a vida".
Para Jesus, a morte representa o dom total da sua existência nesta terra, feita
um dom para a humanidade. Ele "foi entregue"
por Judas como sinal de infidelidade e traição, mas foi entregue pelo
Pai, como sinal de amor e como caminho e semente de vida nova, livre da
escravidão e da morte. Jesus faz dessa vida um dom total, que se completa até
ao seu último suspiro. O pão-corpo e o vinho-sangue são, pois, o maior dom da
misericórdia de Deus, que nos comunica a sua própria vida e nos torna seus
filhos/as em Cristo.
O
pão e o vinho são para comer e beber. Aquilo que comemos e bebemos,
torna-se nossa substância, entra a fazer parte do nosso corpo, dá-nos a energia
de que necessitamos. Comer este pão e beber este vinho, corpo e sangue do
Senhor, significa tornar nosso o seu modo de ser, como homem e como Filho de
Deus. Ao oferecer-se deste modo, Ele diz-nos: aqui vos deixo o meu modo de ser
homem, em comunhão com o Pai e com os outros, o meu modo de pensar e de agir, o
meu modo de tratar os outros, o meu coração de misericórdia e de perdão, a vida
que eu tenho e que não acaba… tudo isso vos dou, para que comais e bebais, para
que se torne a vossa energia, para que se transforme no vosso novo modo de ser.
Deste modo,
a Eucaristia é um dom e um desafio, para cada um e para a
comunidade que a celebra. É dom porque, através dela recebemos o alimento novo
que nos recria como pessoas novas, apesar das nossas debilidades e egoísmos. É
esse dom, que é a vida do Senhor, que nos transforma à sua imagem e nos une com
comunidade de filhos e filhas de Deus. Por outro lado, o convite a comer e
beber representa também um desafio a deixar-se configurar com o modo de ser do
Senhor que comungamos, a tornar-nos dom para o mundo, a partilhar o nosso pão,
o nosso tempo, as nossas capacidades, o nosso carinho e esperança, para que
outros possam entender e aceder à mesma vida de Deus.
A revolução
que começa no sinal e na atitude de partilhar e multiplicar o pão, revela-se,
na Eucaristia, como o centro da vida de cada um de nós e de toda a Igreja. Por
isso, não é questão um dever religioso a cumprir, de uma hora
semanal dada a Deus. Na celebração eucarística, nós escutamos a Palavra de
Jesus, somos por Ele acolhidos e acolhemo-nos uns aos outros; pomos nas suas
mãos o pão que Ele abençoa, multiplica e redistribui para matar a fome de
todos; abrimo-nos à sua presença, no pão
e no vinho, sinais da totalidade do seu dom em nosso favor. Tudo isso nos
alimenta, modela o nosso modos de ser e de agir, torna-nos semelhantes ao
Senhor que comungamos. Por isso, a Eucaristia é, ao mesmo tempo, o ponto de
chegada, mas igualmente o ponto de partida da revolução da multiplicação do
pão.
Conclusão
A reflexão
de hoje, conduz-nos ao centro unificador da nossa vida como
pessoas, como membros da sociedade humana, como irmãos e irmãs na fé. Esse
centro é Jesus, o Senhor, fundamento de uma vida nova, ao serviço de um mundo novo.
Ele deseja
realizar no mundo, em cada lugar e em cada geração, uma revolução que
transforme as atitudes e relacionamentos, para mudar o mundo e
abrir-nos a novos horizontes de esperança e de felicidade.
Essa
revolução começa com a escuta da palavra e a partilha do pão: o pão
para os estómagos famintos; o pão que é o fundamento da vida; o pão da saúde,
da educação, da solidariedade, do carinho, da esperança; o pão que alimenta,
até para além do sofrimento e da morte. Abrir-se para partilhar o pão com os
que precisam é a base desta revolução. Sem essa atitude de partilha, não
podemos ser chamados discípulos de Cristo. É a partilha daquilo que possuímos,
do tempo e das capacidades que temos, do carinho e da esperança que recebemos
com a fé… é esse dom de nós mesmos que constitui o primeiro testemunho do
Evangelho, a atitude nova para a construção de uma Igreja nova, de um mundo
novo.
Esta
atitude modela-se e alimenta-se continuamente na Eucaristia,
atualização da vida, morte e ressurreição do Senhor Jesus. Aí celebramos o dom
total da sua vida oferecida por nós e para nós. Comendo o seu pão, bebendo o
seu vinho – seu Corpo e seu Sangue – somos recriados à sua imagem e tornamo-nos
também dom para os irmãos/ãs e o mundo.
Por isso a
Eucaristia não pode ser separada da vida, pois é a vida que ela
pretende celebrar e transformar. Não tem sentido partilhar o pão da Eucaristia,
sem partilhar e multiplicar o pão para a multidão que tem fome. Por outro lado,
se não se aceita o pão da vida em plenitude que só Jesus nos oferece, todo o
pão que podemos repartir saberá a pouco e a vida que ele gera ficará sempre
limitada pela morte.
O
mandato de Jesus aos discípulos, de continuar a celebrar a Eucaristia
em seu nome não se refere apenas à celebração do rito, mas a receber dele o dom
da vida, com tudo o que ela contém e a fazer da nossa vida, assim transformada,
um dom para os outros. É assim que acolhemos, com coração aberto, grato e
disponível o mandato do Senhor Jesus:
Fazei isto em memória de mim!
Catequeses Quaresmais verdadeiras
Escolas de Fé!
Sem comentários:
Enviar um comentário