terça-feira, 29 de março de 2016

D. José Ornelas Carvalho

  CATEQUESES QUARESMAIS
                                                
Catequeses de Quaresma - 5 Setúbal, 2016

Partilhar o Pão
(Mc 6,34-44)

Do Evangelho do Senhor Jesus Cristo segundo São Marcos

 34    Ao desembarcar, Jesus viu uma grande multidão
       e teve compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor.
       Começou, então, a ensinar-lhes longamente.
 35    A hora já ia muito adiantada, quando os discípulos se aproximaram e disseram:
       "O lugar é deserto e a hora vai adiantada.
 36    Manda-os embora, para irem aos campos e aldeias comprar de comer."
 37    Jesus respondeu:
       "Dai-lhes vós mesmos de comer."
       Eles disseram-lhe:
       "Vamos comprar duzentos denários de pão para lhes dar de comer?"
 38    Mas Ele perguntou:
       "Quantos pães tendes? Ide ver."
       Depois de se informarem, responderam:
       "Cinco pães e dois peixes."
 39    Ordenou-lhes que os fizessem sentar por grupos na erva verde.
 40    E sentaram-se, por grupos de cem e cinquenta.
 41    Jesus tomou, então, os cinco pães e os dois peixes
       e, erguendo os olhos ao céu, pronunciou a bênção,
       partiu os pães e foi-os dando aos seus discípulos, para que eles os repartissem.
       E dividiu também os dois peixes por todos.
 42        Eles comeram até ficar saciados.
 43    E sobraram ainda doze cestos com os bocados de pão e os restos de peixe.
 44    Ora os que tinham comido daqueles pães eram cinco mil homens.

Palavra da Salvação


V
A partilha do Pão
(Mc 6,34-44)

Introdução

            Aproximando-nos da conclusão deste caminho de quaresma, a reflexão deste domingo vai tentar recolher a atitude fundamental que se encontra na base dos sinais que considerámos ao longo das reflexões anteriores: o projeto de Deus para com a humanidade pecadora; o amor do Pai misericordioso, que acolhe e reconcilia o filho leviano; o samaritano solidário com o homem ferido, abandonado e sem ajuda; a denúncia do poder opressor e a proposta do serviço na lavagem carinhosa dos pés.
            Todas estas pedras fundamentais para a reconciliação do mundo, à luz da misericórdia de Deus têm como base o exemplo da vida, morte e ressurreição de Jesus, dom supremo de Deus para toda a humanidade. É um dom que se torna proposta de vida, de partilha de recursos, qualidades e carinho, para matar a fome, eliminar a miséria e criar um mundo novo de dignidade e solidariedade fraternas. Trata-se de uma revolução da maneira de pensar e de agir, que tem com base a narração da multiplicação dos pães e dos peixes, para matar a fome à multidão e se abre à celebração da Eucaristia, presença constante e renovadora do Senhor na comunidade dos seus discípulos. São estes dois sinais do Pão, que constituem o centro da nossa reflexão desta tarde.


1.      Para entender o texto

            No Evangelho de Marcos, a narração da multiplicação do pão insere-se numa altura significativa da vida pública de Jesus. No início do Evangelho, a palavra e os sinais dados por Jesus, com a cura dos doentes e a libertação daqueles que estavam possuídos pelo espírito do mal, atrai grandes multidões de pessoas que desejavam escutá-lo e ser curadas dos seus males.
            Mas, se o seu modo de agir suscitava alegria e nova esperança entre o povo, já para as autoridades era causa de preocupação e de crescente oposição. O seu modo de falar de Deus e da sua misericórdia, a sua atitude crítica para com a imposição de práticas religiosas petrificadas pelo legalismo; a liberdade com que interpretava a tradição dos antigos; a sua frequente companhia com marginais da sociedade; a sua pretensão de agir em nome de Deus… apareciam como manifestações de heresia e perigosa revolução, aos olhos daqueles que controlavam a universo religioso e político de Israel. A oposição começa a assumir formas sempre mais fortes, incluindo ameaças de violência e maquinações de eliminação.
            Jesus inicia então uma nova fase da sua missão. Ele tem bem presente que está a começar um movimento novo no seio do povo e que esse processo vai produzir rupturas, pois muitos e sobretudo os mais poderosos não estão interessados nessa novidade que os põe em causa. Por isso, começa a formar um grupo independente, com aqueles que o seguem, a dedicar mais tempo à instrução desse núcleo da sua futura comunidade e envia em missão à sua frente um primeiro grupo de discípulos pelas povoações onde devia passar.
            É neste contexto de início de uma nova comunidade que, quando os discípulos regressam da missão, se reúne à volta de Jesus uma grande multidão. Mas Ele, acompanhado pelos discípulos, afasta-se num barco, de modo a conceder-lhes algum descanso, pois "nem tinham tempo para comer", como diz o texto. A multidão, porém, vendo para onde se dirigia o barco, apressou-se a correr pela margem do lago e, quando o barco chegou ao seu destino, já lá estava à espera. Diz então o texto que "Jesus viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor", mudou todos os seus planos "e começou a ensiná-los longamente", apesar do cansaço de todos.
            É importante reter alguns elementos deste contexto:
a)      Jesus está iniciando um caminho novo com os discípulos e é seguido por uma multidão que procura alternativas para o sistema presente e o olha com alegria e esperança no futuro.
b)      É neste contexto de novidade que surge o ensinamento de Jesus e a multiplicação do pão. É como um gesto fundador, uma partida para um mundo novo.
c)      Jesus está criando um novo povo, que se formará a partir da sua palavra – "e começou a ensiná-los longamente" – e de um gesto igualmente fundacional: a partilha e a multiplicação do pão.
d)      Tudo isto começa com um olhar de misericórdia: "viu uma grande multidão e encheu-se de compaixão deles, porque eram como ovelhas sem pastor". Esta observação do evangelista dá o sentido a toda a narração, explicando que aquilo que move a ação de Jesus é a com-paixão, isto é, o ver e assumir os problemas da multidão (da humanidade) desorientada com se se tratasse de um rebanho que não tem pastor que dele se ocupe.
            A partir destes indícios podemos dar-nos conta de que a narração de S. Marcos não representa simplesmente o relato de um milagre formidável de Jesus que oferece um piquenique gratuito, para mostrar a sua grandeza e bondade. Trata-se sim de algo muito importante para a situação de necessidade e desorientação da multidão e que se insere no caminho para o mundo novo que ele está a iniciar. Jesus, lançou um desafio, começou uma nova estrada; esta gente sentiu com alegria e esperança o apelo para este novo caminho e foi à procura de Jesus. Ele, que vinha à procura de um tempo de repouso, não se remeteu ao seu merecido descanso, mas foi ter com eles pôs-se a ensiná-los e realizou um gesto que eles nunca mais haviam de esquecer. Esse gesto foi narrado para nós hoje, para que entendamos o mundo novo ao qual somos chamados. Com estas palavras de introdução, entremos então na narração, tentando entendê-la mais de perto.

2.      A Misericórdia torna-se Partilha

            A narração da multiplicação do pão começa, pois, com uma decisiva observação sobre os sentimentos de Jesus para com a multidão: "Encheu-se de compaixão". O ensinar longamente e a multiplicação são duas faces da mesma moeda que é a misericórdia/com-paixão que Jesus sente para com a multidão.
            Os discípulos estão ainda longe desta atitude e não chegam a entender na sua inteireza as ações do Mestre. Entusiasmam-se com a novidade do seu ensinamento, mas não chegam a ligar tudo isso com a vida concreta de todos os dias. Essa não está incluída no "pacote" religioso. Por isso, a certa altura, chamam a atenção do Mestre: Basta de religião, por hoje, "manda-os embora, para irem aos campos e aldeias comprar de comer".
            A resposta de Jesus é o primeiro pilar da sua revolução: "Dai-lhes vós mesmos de comer". Esta ordem tem a ver, antes de mais, com a com-paixão. Ele não pode mandar embora a multidão, porque sente a fome daquela gente e deseja que os discípulos a sintam também, que não se alienem dos problemas das pessoas que estão à volta. Escutar a Palavra não é apenas um ato piedoso; implica um pacto de solidariedade, de comum sensibilidade e mútua responsabilidade. Esta solidariedade não é uma opção para os discípulos de Jesus; é uma ordem :"Dai-lhes de comer".
            A questão do pão nunca é uma questão individual. Na perspetiva dos discípulos, a comunidade tinha estado reunida à volta de Jesus para escutar a palavra, mas, quando se trata do pão, "que vão (cada um), comprar de comer". A fraternidade tem validade no setor religioso, mas termina quando se trata das questões práticas da vida. Então, para que serve a comunidade de Jesus? Para estómagos fartos? Jesus não quer que a sua comunidade seja apenas um clube fechado, destinado a quem não tem problemas. Pelo contrário, o exemplo que Ele dá é de uma atitude aberta, solidária e disponível; um "hospital de campanha", no dizer do Papa Francisco. A fome que mata milhões de pessoas em todo o mundo não pode deixar de queimar o estómago de quem quer que sinta um mínimo de dignidade humana. Particularmente quem escuta o Evangelho, como discípulo de Jesus, tem de sentir a mesma compaixão misericordiosa do Mestre; tem de assumir um compromisso para com as bocas, os espíritos, os corações famintos de pão, de educação, de companhia, de afeto.
            Os discípulos sentem este apelo e dispõem-se a aceitar a ideia de Jesus, mas começam a deitar contas e ficam desanimados: Nem 200 denários de pão (o equivalente ao salário de 200 dias de um trabalhador) chegariam para dar um naco a cada um…  Este é o segundo patamar da revolução de Jesus. Tanta gente desanima com a enormidade do esforço e dos custos necessários para transformar o mundo e acabar com  miséria. Assustam-se e resignam-se à situação, por medo ou comodismo.
            Jesus é direto, concreto e, ao mesmo tempo, simples: Não perguntem quanto é preciso, vejam quanto têm, com quanto podem contribuir: "Quantos pães tendes? Ide ver". E, quando foram ver, verificaram que tinham "cinco pães e dois peixes". Na Bíblia, o número 7 tem um significado simbólico de totalidade. O que a comunidade apresenta a Jesus pode ser de dimensões reduzidas, mas é tudo quanto tem. Esse é o contributo do grupo para a solução do problema do pão. O evangelista João diz que é um rapazito que oferece os cinco pães e dois peixes. De qualquer modo, a perspetiva de Jesus é muito clara: quando se trata das questões fundamentais da vida, há que apostar até ao fundo: dar tudo. Isso não significa ficar sem nada, significa colocar-se totalmente ao serviço de todos. O menino ou a comunidade, perceberam que não só eles têm fome, mas toda a multidão. Em vez de enveredar pela lógica da solução individual, da preservação dos privilégios dos que possuem, foram pela estrada da partilha e da solidariedade entre todos. Globalizaram a necessidade de todos para globalizar também a busca de solução. É a partir desta abertura da percepção e do coração que o milagre acontece.
            Mas há ainda um terceiro passo, que é decisivo na revolução do pão. Essa totalidade partilhada da comunidade é colocada nas mãos de Jesus. Ele "levantou os olhos ao céu, pronunciou a bênção, partiu os pães e foi dando aos discípulos, para que os distribuíssem". A bênção pronunciada por Jesus é a que ainda hoje se diz ao partir do pão, à mesa, e soa mais ou menos assim: "Bendito sejas, Senhor, Rei do universo, pelo pão que fizeste brotar da terra para nosso alimento!". É um agradecer/bendizer a Deus pelo dom do pão, que todos recebemos da bondade e liberalidade do Pai do céu. Recebemos de graça este mundo com tudo o que ele contém. Aquilo que chamamos nosso é um dom de Deus. O nosso trabalho é ainda fruto das capacidades que Deus nos deu e que criativamente desenvolvemos. Quando se reconhece esta realidade básica, percebemos que a questão do pão não pode ser simplesmente individual. O "PÃO" – todos os meios de vida – são claramente dons de Deus e Ele conta com cada um de nós para desenvolver, produzir e partilhar com a mesma atitude generosa que Ele tem para connosco.
            Este é o sentido e o desafio do milagre do pão. Quando um grupo ou uma comunidade olha o pão deste modo e coloca aquilo que possui nas mãos de Jesus, ao serviço do seu projeto de solidariedade, dignidade e justiça para todos os homens nesta terra; então não vai faltar o pão para ninguém. Se há fome e miséria, não é porque não haja bens suficientes; é porque alguns acumulam, monopolizam e estragam, deixando outros sem o mínimo necessário. Isto é válido no que diz respeito ao pão para comer, à educação paras os mais novos, do trabalho para os jovens, da saúde para os doentes, do carinho para os anciãos.
            Como família, como comunidade cristã e Igreja diocesana somos chamados a multiplicar assim o pão para os que têm fome. Este é um empenho cheio de consequências, na forma de ver e ordenar a própria vida, de ser honestos, generosos e transparentes e na administração dos bens, de estar ativamente presentes e ativos na vida da comunidade cristã, da sociedade, do mundo.
            Há ainda um detalhe que é importante. Diz o texto que todos ficaram saciados e que recolheram 12 cestos de bocados dos pães e dos peixes. Isto significa que a comunidade não olha apenas para os seus membros, mas que alarga o próprio olhar de misericórdia a todos os outros, fora da comunidade, que têm necessidade. A fome, a miséria, a injustiça não têm credo, nem raça, nem nacionalidade. Têm uma dor atroz, uma necessidade urgente, que apelam à misericórdia, à solidariedade, à partilha.
            Não nos iludamos: se não somos capazes de partilhar com fraternidade e justiça os bens que recebemos de Deus, não somos cristãos, não entramos na revolução do Evangelho. A "contabilidade" diante de Deus, para verificar a seriedade da vida não se faz com os atos religiosos, mas com a misericórdia, a começar dos elementos fundamentais da existência: "tive fome e destes-me de comer, tive sede e destes-me de beber, era peregrino e recolhestes-me, estava nu e destes-me que vestir, adoeci e visitastes-me, estive na prisão e fostes ter comigo… Sempre que fizestes isto a um destes meus irmãos mais pequeninos, a mim mesmo o fizeste" (Mt 25,35ss).
            A atitude da multiplicação do pão, da alegria, da vida, não serve apenas para matar a fome aos necessitados. Trata-se de uma revolução que inverte a maneira de pensar. Faz passar da lógica do domínio, da ganância, do roubo, que geram rivalidade, divisão e guerra; à mentalidade do dom, de onde brota partilha, gratidão, solidariedade, comunidade. É o ponto de viragem para o Coração Novo, plasmado à imagem do Coração de Cristo, para a Nova Humanidade segundo o projeto do Evangelho.

3.      O Pão, Corpo do Senhor

            Na última ceia com os discípulos, Jesus volta ao tema do pão, para revelar uma nova dimensão do gesto de partilhar e multiplicar os dons de Deus. Aqui, não se trata apenas de pão e peixe, do alimento necessário e quotidiano, mas de pão e vinho, sinal de um banquete de festa. Trata-se de algo que vai para além da simples subsistência elementar e que se abre a outras dimensões do ser: a festa, a alegria, a celebração do passado e a alimentação do futuro, a expressão pessoal e cultural daquilo que somos, evocamos e sonhamos. Por isso, cada família, cada povo, cada civilização tem o seu modo de celebrar: o dia nacional, o dia da libertação, o dia da memória, da república…
            Celebrar deste modo, não significa simplesmente recordar o passado. Ao celebrar, nós inserimo-nos nessa mesma memória, recuperamos a energia desses eventos do passado, de modo que continuem a iluminar e a configurar o presente e o futuro. É neste ambiente de celebração do memorial da Páscoa, a grande festa da libertação de Deus em favor do seu povo, que Jesus celebra a sua última ceia com os discípulos.
            Jesus junta a este memorial do passado um novo conteúdo: a sua vida com os discípulos, a sua morte iminente e a sua ressurreição gloriosa. Os gestos e palavras sobre o pão e o vinho, têm em conta e exprimem tudo isto: a libertação de Deus ao longo dos séculos, a vinda de Jesus a este mundo, a sua vida, morte e ressurreição e a sua contínua presença futura entre os seus, até ao fim da história humana. É por isso que a Eucaristia representa o centro e o resumo de toda a existência cristã. Sem pretender apresentar aqui a totalidade do mistério eucarístico, vamos tomar em consideração os seus traços fundamentais, que se ligam com o tema da multiplicação do pão.
            Durante aquela ceia, Jesus começou por celebrar com os discípulos, o memorial da Páscoa: a libertação do Egito, a Aliança do Sinai e todas as libertações operadas por Deus ao longo da história, em favor do seu povo. Essa celebração tinha como elemento central o cordeiro pascal, cujo sangue servira para identificar e salvar os hebreus na libertação do Egito. É esta festa que Jesus celebra, pela última vez com os seus discípulos.
            Mas acrescenta agora um novo gesto para celebrar a Nova Aliança, a determinante obra de libertação em favor de toda a humanidade, através da sua morte e ressurreição. Os elementos fundamentais da celebração são o pão e o vinho, que já eram importantes na celebração da Páscoa, mas que assumem agora um significado novo, em relação com a sua vida, morte e ressurreição.
            Ao identificar esse pão com o seu corpo"Isto é o meu corpo entregue por vós" – Jesus assume, antes de mais, a dimensão do pão partilhado e multiplicado, como alimento solidário, que cria um novo estilo de relação, uma nova comunidade. Mas vai muito mais além: aquilo que ele oferece à multidão não é alguma coisa, um recurso, ou capacidade, mas a sua própria pessoa, o seu corpo. Segundo o pensa­men­to hebraico, o corpo não é uma parte da pessoa, contraposto ao espírito ou à alma, mas designa a pessoa toda, enquanto viva e em relação com os outros e o mundo. Ao realizar este gesto, Jesus afirma que o seu ser nesta terra, o seu ser físico, a sua energia e poder, o seu pensar, falar e agir, o seu modo de amar, a sua aceitação da morte e a sua ressurreição… tudo isso é dado em favor dos discípulos e da humanidade que eles representam. E, como Ele não é apenas um homem, mas o Filho de Deus, esse ser divino também se torna dom para a humanidade. Foi esse ser humano e divino que Ele ofereceu e colocou ao serviço dos mais pobres e necessitados ao longo da vida; é esse dom que levará até às últimas consequências na sua morte e ressurreição.
            É importante entender a relação e a superação da multiplicação do pão em relação à Eucaristia. Por assim dizer, Jesus revê-se no dom total da comunidade ou do menino que oferece os cinco pães e dois peixes. Ele oferece-se totalmente e torna-se esse pão de solidariedade e generosidade de Deus para com os homens. Essa solidariedade é fundamental para a revolução que pretende realizar, a fim de que surja um mundo novo. Mas, também esse pão seria apenas um paliativo, se se limitasse a alimentar o estómago, pois seria seguido ainda de outra fome e acabaria sempre na morte. Ao dar-se a si mesmo em alimento para nossa fome de vida, Jesus, como homem e Filho de Deus, nutre-nos de um modo novo, com um pão que alimenta para a vida eterna. Por isso, diz: "Eu sou o pão vivo que desce do céu. Quem come deste pão, viverá para sempre" (Jo 6,51). O que está em causa não é apenas um esforço novo de maior solidariedade, mas o alargamento da vida pessoal e comunitária, segundo os novos horizontes de Deus. É esse o dom que Jesus partilha connosco, através da sua vida, morte e ressurreição. E tudo isso é o que celebramos atualizamos e assimilamos, na celebração da Eucaristia.
            No fim da ceia, Jesus identifica o vinho com o seu "sangue derramado", isto é, com a sua morte. O vinho é, na tradição bíblica, o sinal da alegria, da festa, do amor fiel. Deste modo, afirma que o serviço prestado aos seus, à humanidade, será levado até às ultimas consequências: até à morte, para gerar vida, alegria e festa. Esse é o testemunho do amor fiel de Deus para com a humanidade. Um amor que não se poupa, que não se detém perante qualquer dificuldade, nem diante do sofrimento ou da morte.
            Mas, como acontece com o pão, temos que fazer uma distinção: a morte de Jesus representa, sim, o fim da sua vida sobre esta terra, como para qualquer outro mortal. Mas, Ele sempre falou da sua morte, não apenas como um "morrer", mas como um "ser entregue" e como um "dar a vida". Para Jesus, a morte representa o dom total da sua existência nesta terra, feita um dom para a humanidade. Ele "foi entregue" por Judas como sinal de infidelidade e traição, mas foi entregue pelo Pai, como sinal de amor e como caminho e semente de vida nova, livre da escravidão e da morte. Jesus faz dessa vida um dom total, que se completa até ao seu último suspiro. O pão-corpo e o vinho-sangue são, pois, o maior dom da misericórdia de Deus, que nos comunica a sua própria vida e nos torna seus filhos/as em Cristo.
            O pão e o vinho são para comer e beber. Aquilo que comemos e bebemos, torna-se nossa substância, entra a fazer parte do nosso corpo, dá-nos a energia de que necessitamos. Comer este pão e beber este vinho, corpo e sangue do Senhor, significa tornar nosso o seu modo de ser, como homem e como Filho de Deus. Ao oferecer-se deste modo, Ele diz-nos: aqui vos deixo o meu modo de ser homem, em comunhão com o Pai e com os outros, o meu modo de pensar e de agir, o meu modo de tratar os outros, o meu coração de misericórdia e de perdão, a vida que eu tenho e que não acaba… tudo isso vos dou, para que comais e bebais, para que se torne a vossa energia, para que se transforme no vosso novo modo de ser.
            Deste modo, a Eucaristia é um dom e um desafio, para cada um e para a comunidade que a celebra. É dom porque, através dela recebemos o alimento novo que nos recria como pessoas novas, apesar das nossas debilidades e egoísmos. É esse dom, que é a vida do Senhor, que nos transforma à sua imagem e nos une com comunidade de filhos e filhas de Deus. Por outro lado, o convite a comer e beber representa também um desafio a deixar-se configurar com o modo de ser do Senhor que comungamos, a tornar-nos dom para o mundo, a partilhar o nosso pão, o nosso tempo, as nossas capacidades, o nosso carinho e esperança, para que outros possam entender e aceder à mesma vida de Deus.
            A revolução que começa no sinal e na atitude de partilhar e multiplicar o pão, revela-se, na Eucaristia, como o centro da vida de cada um de nós e de toda a Igreja. Por isso, não é questão um dever religioso a cumprir, de uma hora semanal dada a Deus. Na celebração eucarística, nós escutamos a Palavra de Jesus, somos por Ele acolhidos e acolhemo-nos uns aos outros; pomos nas suas mãos o pão que Ele abençoa, multiplica e redistribui para matar a fome de todos;  abrimo-nos à sua presença, no pão e no vinho, sinais da totalidade do seu dom em nosso favor. Tudo isso nos alimenta, modela o nosso modos de ser e de agir, torna-nos semelhantes ao Senhor que comungamos. Por isso, a Eucaristia é, ao mesmo tempo, o ponto de chegada, mas igualmente o ponto de partida da revolução da multiplicação do pão.

Conclusão

            A reflexão de hoje, conduz-nos ao centro unificador da nossa vida como pessoas, como membros da sociedade humana, como irmãos e irmãs na fé. Esse centro é Jesus, o Senhor, fundamento de uma vida nova, ao serviço de um mundo novo.
            Ele deseja realizar no mundo, em cada lugar e em cada geração, uma revolução que transforme as atitudes e relacionamentos, para mudar o mundo e abrir-nos a novos horizontes de esperança e de felicidade.
            Essa revolução começa com a escuta da palavra e a partilha do pão: o pão para os estómagos famintos; o pão que é o fundamento da vida; o pão da saúde, da educação, da solidariedade, do carinho, da esperança; o pão que alimenta, até para além do sofrimento e da morte. Abrir-se para partilhar o pão com os que precisam é a base desta revolução. Sem essa atitude de partilha, não podemos ser chamados discípulos de Cristo. É a partilha daquilo que possuímos, do tempo e das capacidades que temos, do carinho e da esperança que recebemos com a fé… é esse dom de nós mesmos que constitui o primeiro testemunho do Evangelho, a atitude nova para a construção de uma Igreja nova, de um mundo novo.
            Esta atitude modela-se e alimenta-se continuamente na Eucaristia, atualização da vida, morte e ressurreição do Senhor Jesus. Aí celebramos o dom total da sua vida oferecida por nós e para nós. Comendo o seu pão, bebendo o seu vinho – seu Corpo e seu Sangue – somos recriados à sua imagem e tornamo-nos também dom para os irmãos/ãs e o mundo.
            Por isso a Eucaristia não pode ser separada da vida, pois é a vida que ela pretende celebrar e transformar. Não tem sentido partilhar o pão da Eucaristia, sem partilhar e multiplicar o pão para a multidão que tem fome. Por outro lado, se não se aceita o pão da vida em plenitude que só Jesus nos oferece, todo o pão que podemos repartir saberá a pouco e a vida que ele gera ficará sempre limitada pela morte.
            O mandato de Jesus aos discípulos, de continuar a celebrar a Eucaristia em seu nome não se refere apenas à celebração do rito, mas a receber dele o dom da vida, com tudo o que ela contém e a fazer da nossa vida, assim transformada, um dom para os outros. É assim que acolhemos, com coração aberto, grato e disponível o mandato do Senhor Jesus:

Fazei isto em memória de mim!




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