sábado, 27 de fevereiro de 2016

D. José Ornelas Carvalho



CATEQUESES QUARESMAIS

Catequeses de Quaresma - 2 Setúbal, 2016 

II O PAI MISERICORDIOSO (Lc 15,11-32)

"Aproximavam-se dele todos os cobradores de impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da lei murmuravam entre si, dizendo: "Este acolhe os pecado-res e come com eles." Jesus propôs-lhes, então, esta parábola:
11Um homem tinha dois filhos. 12O mais novo disse ao pai: "Pai, dá-me a parte dos bens que me corresponde". E o pai repartiu os bens entre os dois. 13Poucos dias depois, o filho mais novo, juntando tudo, partiu para uma terra longínqua e por lá esbanjou tudo quanto possuía, numa vida desregrada.
14Depois de gastar tudo, houve grande fome nesse país e ele começou a passar priva-ções. 15Então, foi colocar-se ao serviço de um dos habitantes daquela terra, o qual o mandou para os seus campos guardar porcos. 16Bem desejava ele encher o estômago com as alfarro-bas que os porcos comiam, mas ninguém lhas dava.
17E, caindo em si, disse: "Quantos jornaleiros de meu pai têm pão em abundância, e eu aqui a morrer de fome! 18Levantar-me-ei, irei ter com meu pai e vou dizer-lhe: Pai, pequei contra o Céu e contra ti; 19já não sou digno de ser chamado teu filho; trata-me como um dos teus jornaleiros."
20E, levantando-se, foi ter com o pai. Quando ainda estava longe, o pai viu-o e, en-chendo-se de compaixão, correu a lançar-se-lhe ao pescoço e cobriu-o de beijos.
21O filho disse-lhe: "Pai, pequei contra o Céu e contra ti; já não mereço ser chamado teu filho."
22Mas o pai disse aos seus servos: "Trazei depressa a melhor túnica e vesti-lha; dai-lhe um anel para o dedo e sandálias para os pés. 23Trazei o vitelo gordo e matai-o; vamos fazer um banquete e alegrar-nos, 24porque este meu filho estava morto e reviveu, estava perdido e foi encontrado." E a festa principiou.
25Ora, o filho mais velho estava no campo. Quando regressou, ao aproximar-se de casa ouviu a música e as danças. 26Chamou um dos servos e perguntou-lhe o que era aquilo. 27Disse-lhe ele: "O teu irmão voltou e o teu pai matou o vitelo gordo, porque chegou são e salvo."
28Encolerizado, não queria entrar; mas o seu pai, saindo, suplicava-lhe que entrasse. 29Respondendo ao pai, disse-lhe: "Há já tantos anos que te sirvo sem nunca transgredir uma ordem tua, e nunca me deste um cabrito para fazer uma festa com os meus amigos; 30e ago-ra, ao chegar esse teu filho, que malbaratou os teus bens com meretrizes, mataste-lhe o vitelo gordo."
31O pai respondeu-lhe: "Filho, tu estás sempre comigo, e tudo o que é meu é teu. 32Mas tínhamos de fazer uma festa e alegrar-nos, porque este teu irmão estava morto e re-viveu; estava perdido e foi encontrado."

Introdução

Continuamos hoje a reflexão iniciada no domingo passado, na catedral de Setúbal, sobre o Coração misericordioso de Deus. Meditámos como este amor se revela desde a cria-ção e está patente ao longo de toda a história humana. Ele revela-se de modo singular na história do povo de Israel e atinge o seu ponto culminante em Jesus de Nazaré, presença solidária e salvadora, que abraça toda a humanidade e toda a história. Demo-nos conta tam-bém que somos parte de uma humanidade frágil e pecadora, que frequentemente não en-tende o projeto de Deus e assume atitudes que lhe são contrárias, pondo em risco a nossa vida, a daqueles que nos rodeiam e a do nosso planeta. Perante a nossa incapacidade e o nosso pecado, Deus não se comporta como frio juiz ou autoridade distante. Perante o ho-mem débil e pecador, o amor de Deus torna-se misericórdia e proximidade solidária, até se tornar presente, no meio de nós, no seu Filho Jesus.
Nesta e nas próximas reflexões, vamos fixar a atenção na revelação do amor miseri-cordioso de Deus em Jesus, que se manifesta em todos os domínios da vida, criando um mo-do existencial novo, que transforma a pessoa e a sociedade e abre à nossa finitude humana os horizontes da vida imortal junto de Deus.
Tomamos hoje como centro da nossa reflexão uma joia das palavras de Jesus: a pará-bola do Pai misericordioso, ou, como habitualmente é chamada, a parábola do "Filho Pródi-go" (Lc 15,11-32). Deixamo-nos, assim, guiar pela palavra de Jesus, para entender o que Ele nos revela do coração do Pai do céu. Não farei um comentário sistemático a esta parábola, mas sublinharei alguns dos seus aspetos mais importantes, onde se revela a atitude de Deus para com o homem limitado e pecador.

1. Entender a parábola

Comecemos por prestar atenção a alguns aspetos importantes para entender a razão e o significado da parábola. No Evangelho de Lucas, esta é a última de três parábolas sobre a misericórdia de Deus: A ovelha perdida (15,4-7), o dracma perdido (Lc 15,8-10) e a nossa parábola, que se apresenta como "o filho perdido" ou, melhor, "o Pai misericordioso". As três parábolas têm a introdução que ouvimos ler:
Aproximavam-se dele todos os cobradores de impostos e pecadores para o ouvirem. Mas os fariseus e os doutores da lei murmuravam entre si, dizendo: "Este acolhe os pe-cadores e come com eles." Jesus propôs-lhes, então, esta parábola… (Lc 15,1).
Esta introdução fornece três indicações importantes. Em primeiro lugar, diz que o mo-do de agir de Jesus, concretamente a sua proximidade para com os pecadores, era criticado pelas autoridades religiosas do seu tempo. Em segundo lugar, mostra que a parábola consti-tui a explicação para este modo de agir. Finalmente, afirma que estas atitudes de Jesus são consequência e revelação do modo como Deus age. Embora o nome de Deus não seja nunca mencionado ao longo do texto, é evidente que é Ele que está por detrás da figura do pai, nesta última parábola.
Estas primeiras observações já indicam que a parábola não pretende acender uma dis-cussão teórica, mas visa modos concretos de ver e de agir à luz da atitude de Deus, revela-da no modo como Jesus se comporta, concretamente em relação aos pecadores. Deste modo, a história contada por Jesus tem, de imediato, um caráter interpelador para a inteligên-cia e a fé, ao mesmo tempo que desafia os comportamentos que assumimos na vida. É neste tom que vamos prosseguir a sua meditação.

2. A busca ilusória da liberdade

A parábola tem início com o pedido do mais novo dos dois filhos para que o Pai lhe entregue a parte da herança que lhe toca, de modo que possa desenvolver autonomamen-te os seus projetos de vida. É óbvio que o pedido não representa uma boa maneira de pro-ceder. O filho inicia o próprio caminho de autonomia com os bens do pai vivo, como recorda o irmão mais velho: (v.30). A sequência da história torna muito "malbaratou os teus bens"mais séria a situação: fora da casa paterna, o filho revela não ter capacidade nem sabedoria para gerir o património recebido e rapidamente o desbarata, ficando reduzido à miséria e vendo-se obrigado a uma vida indigna e faminta. De facto, guardar porcos e partilhar a sua comida, é particularmente humilhante e degradante para a mentalidade judia, que conside-rava impuros estes animais.
Como um adolescente impaciente, o filho mais novo quer viver o seu sonho e acha que a casa do pai não é suficiente para si; que, enquanto estiver na casa paterna, nunca será um adulto. Por isso decide partir, prescindindo do pai, embora utilizando o seu património. É uma atitude semelhante à do discurso da serpente, da narração da criação, a que nos refe-rimos na primeira reflexão: Deus é um obstáculo à plena expansão do homem. O pecado começa com a incompreensão do amor e do projeto de Deus.
A reação do pai não se descreve inicialmente. A parábola não quer explorar a emoção da sua dor, que se tornará evidente na alegria do regresso. De forma muito simples, diz-se que ele dividiu a herança e deu ao filho mais novo os bens que lhe estavam, desde sempre, destinados. O pai aparece assim como homem rico e generoso, que pensa no bem dos seus filhos e coloca à disposição deles o seu património. Não é um pai possessivo nem impositivo. Ama, mesmo que seja incompreendido, mas deixa livre, sem deixar de amar: o oposto dos crimes passionais, da violência familiar, do conceito do amor-posse, amor-domínio.
O resultado do afastamento do pai é que o filho fica reduzido a si mesmo, à própria incapacidade de pensar e orientar a vida, deixando-se guiar por emoções e afetos imediatos, que parecem conduzir à felicidade, mas que acabam na frustração, na perda da dignidade e no risco da própria vida. A casa do pai, não era afinal limitação. Bem pelo contrário, era o local do afeto, da dignidade, do amor. A sua saída não representou independência, mas alie-nação e sujeição.
Além disso, o pai é o fundamento do relacionamento entre irmãos. Falando com o pai, o irmão mais velho refere-se, em seguida, ao mais novo como e não já "esse teu filho" como seu irmão. A eliminação do pai acaba por criar um abismo entre os irmãos. O pai/mãe representa uma estância superior (transcendente, no caso de Deus) que fundamenta a rela-ção fraterna. Não se trata simplesmente de uma noção de autoridade inquestionável, mas de uma referência afetiva e antropológica, de um sentido de história e de cultura, que situa no espaço-tempo as pessoas e a sociedade. Esse é o papel da família, da verdadeira autori-dade e dos princípios que regem a sociedade, da fé que faz levantar os olhos para o pai co-mum de todos e edificar a casa comum da humanidade, para além dos interesses individuais e das visões e opiniões de cada pessoa.
Com a pretensão de criar um homem novo, moderno e livre, muitos sistemas revolu-cionários tentaram cortar as raízes do passado, retirando os filhos aos pais e chegando mesmo a destruir os registos municipais, as manifestações de cultura popular e qualquer manifestação religiosa. O resultado foi catastrófico. O que se criou foi uma sociedade de órfãos, mas não de irmãos, onde vigorava a obediência a estados totalitários, onde a real solidariedade foi desaparecendo. Aqueles que falam da abolição de Deus em nome da liber-dade e autonomia do homem, acabam normalmente por produzir obediências ideológicas e opressões totalitárias, onde a dignidade e liberdade das pessoas fica radicalmente compro-metida.
Por outro lado, a imagem de um Deus totalitário e impositivo, um Deus simplesmente de recompensas e castigos, um Deus que não permite o sonho, por vezes iludido dos filhos, contradiz radicalmente a imagem que a parábola dele nos transmite. O Pai que Jesus conhe-ce e revela é um Deus que promove o crescimento, a autonomia e a liberdade dos seus fi-lhos/as, mesmo à custa de vê-los errar, afastar-se e até pôr em risco a própria vida. O pai sabe que os filhos são limitados, mas que devem fazer, assim mesmo, a sua vida.
Muitas vezes nos perguntamos porque é que Deus permite este tipo de liberdades; porque deixa partir o filho e lhe dá os meios para fazê-lo. Para além do que disse acima, pa-rece-me que há uma razão fundamental. Tudo é uma questão de amor. Se os filhos não en-tendem o amor, nenhuma medida de coação manterá unida a família. Ora, o amor não se pode decretar ou comandar. Se eu tiver saber e meios, posso obrigar uma pessoa a fazer tudo, a lamber-me inclusivamente os pés. Mas seria ridículo dizer, em tom de comando, "ama-me!" O amor não se comanda nem se impõe; só se pode oferecer e declarar – "eu amo-te" – e esperar que, do outro lado ecoe algo como "eu também te amo". O problema do bem não pode ficar-se pelas leis, sempre externas; é uma questão de coração, de amor. Apenas no húmus fecundo da liberdade e dignidade pode desabrochar. A parábola mostra que, na perspetiva do Pai do céu, a liberdade e o amor valem bem os riscos que se correm para conquistá-los, acompanhá-los e mantê-los.
Isso explica o silêncio paciente do pai. O filho tem de ser livre; tem de ter tempo para entender e dizer – se alguma vez o disser – "Eu te amo". A parábola começa, pois por revelar o amor paciente de Deus que cria pessoas para a liberdade, a responsabilidade, a dignidade e a felicidade. Não se preocupa que tomemos em nossa mão o seu património. Espera mes-mo que o façamos e que, ao longo da viagem da nossa autonomia, criatividade e desilusões frustrantes, nos fique ao menos a recordação do pai, da sua liberalidade e do seu amor. É o maior património e a melhor memória que nos deixa, para que acompanhe a nossa vida de filhas e filhos livres e amados.


3. O caminho do regresso

Na sua viagem de sonho ilusório, o fugitivo da casa paterna, foi ao encontro da desilu-são, da frustração e da experiência da própria fragilidade e dependência. Mas levou também consigo algo de precioso: a memória da vida na casa do pai e sobretudo aquilo que consti-tuía o centro do "livro de instruções": o amor do pai. Na realidade, a parábola só indireta-mente faz referência à recordação do amor do pai por parte do filho. O que diz é que ele, na situação de penúria em que se veio a encontrar, se recordou da abundância da casa paterna e pensou voltar e pedir para ser admitido como um dos servos, pois não merecia ser tratado como filho. Esta declaração mostra que reconhece o erro cometido, a dor causada ao pai e, pelo menos até certo ponto, que tem confiança na sua bondade para aceitá-lo de volta.
É este filho que o pai vê vir ao longe. Não sabe o que se passou, que ideias ou propósitos terá. Apenas sabe que este é o seu filho que está de volta e isso é o motivo de tanta ale-gria, de tantos beijos e abraços, depois da acutilante saudade, de tanta dor e ansiedade. Uma alegria que compensa e cobre toda a tristeza, saudade e cuidados da ausência, de tal modo que nem deixa que o filho profira a confissão que preparara, e torna desnecessária a expressão formal do perdão. Além disso, o estado miserável em que encontra o filho põe em movimento todo o afeto do pai e os préstimos dos servos da sua casa, para restituir beleza, bem-estar e dignidade ao retornado, antes de se começar a festa do seu regresso. Este é o coração paradoxal do pai; estas são manifestações tão exageradas que só o amor explica. Mas são, diz Jesus, a imagem da alegria do coração do Pai do céu, por cada filho/a que re-gressa a casa.
Para Deus, este filho leviano, ingénuo, sonhador, malévolo ou egoísta, que põe em causa a sua vida e o bem-estar da própria família, da Igreja, da sociedade, somos todos nós, cada um de nós. Todos estávamos longe, como seres humanos frágeis limitados e pecado-res; todos fomos admitidos e integrados na família deste Pai e destes irmãos e irmãs. É a experiência desta misericórdia radical de Deus que torna possível a vida pessoal e da convi-vência entre humanos que continuamos a ser. Esse é o grande desafio da segunda parte da parábola.

4. Reconstruir a família


A parábola parecia terminar com o regresso do filho e o começo da festa. Seria uma história comovente com um fim feliz. Mas Jesus abre imediatamente a uma segunda parte da narração, pondo a foco o filho mais velho, que tinha ficado em casa do pai. Ao saber do regresso do irmão e da festa que o pai tinha preparado, este filho justo, obediente e bem pensante não pode esconder a sua fúria. A atitude do pai não tem lógica nem justiça e pare-ce uma afronta aos que se comportam bem. Além disso, tratar com tanta alegria e liberali-dade o irmão estouvado, é uma atitude pedagogicamente desaconselhável, que pode levar outros jovens a comportarem-se assim, sem pensarem nas consequências dos seus atos. Por sua parte, ele já deixou de considerar o mais novo como membro da família. Menciona-o como , destacando-se assim, ele próprio, tanto do irmão como do próprio pai "esse teu filho"e da família: . "não queria entrar".
A aparente justeza da frustração do filho mais velho não deixa indiferente o pai, que sente que lhe deve dar atenção e falar ao coração. Tenta fazê-lo entrar – "o pai, saindo, suplicava-lhe que entrasse"- – não apenas na casa e na festa, mas na lógica do seu coração e da plicava-lhe que entrasse"família. Faz-lhe ver que o património todo da casa paterna é um dom (não um direito), tanto para o irmão como para ele. Além disso, sem a sua participação de irmão mais velho, esta família não está completa nem o coração do pai pode conhecer descanso. O perdão do pai/mãe é o princípio e a fonte da união e amor de todos, mas não se refaz a família se os irmãos não se entendem, não se acolhem, não se reconciliam e não celebram o regresso do irmão leviano.
Esta segunda parte da parábola abre o jogo a cada um de nós, a cada família e a toda a Igreja. A aparente justiça do filho mais velho é tão nociva para a família como a leviandade do irmão mais novo. Se é verdade que este último não entendeu o coração do pai, também o mais velho está longe da sua atitude gratuita e misericordiosa. Ao contar esta parábola, Jesus sabia bem que estava a encontrar muito mais dificuldades e resistências da parte dos que se consideravam justos e se agarravam aos próprios méritos e direitos, do que da parte dos pecadores, que estavam a entender melhor o seu papel de portador da misericórdia e o carinho de Deus.
Dividir simplisticamente a sociedade entre justos e pecadores e excluir estes últimos – eliminá-los, fechá-los em cadeias, sem outras perspetivas – é destruir as bases da solidarie-dade e renunciar a criar uma sociedade melhor. Se se aplicar a lei de talião, todos andare-mos de cabeça partida, ou eliminar-nos-emos mutuamente, pois, sendo todos falíveis e pe-cadores, todos damos razão, a alguém e a Deus, para nos acusarem e punirem. Isto para não mencionar o facto de serem sempre aqueles que detêm o poder os que fazem as leis pelas quais julgam os mais pobres e frágeis. A eliminação do Pai não nos deixa mais irmãos. Em lugar do Pai, em nome da democracia, muito frequentemente entram os tiranos e oportunis-tas. Em nome desses critérios é que Jesus foi juridicamente condenado em nome de Deus e em nome do império, pelas autoridades legitimamente constituídas. Antes foi julgado na mente e no coração das cabeças bem-pensantes instituídas em poder. Esses estão bem re-presentados pelo irmão mais velho da parábola, que acha que quem erra tem de pagar até ao último centavo.
O que Jesus vem propor é que assumamos uma atitude diferente: que ponhamos a funcionar a inteligência do coração, o afeto e a misericórdia que levam ao perdão, à reconci-liação e à renovação da vida e do tecido social. Ele deseja que esta atitude esteja presente em cada família, em cada grupo e sobretudo na sua comunidade, a Igreja. Os discípulos que colocou à frente da sua comunidade fizeram bem a experiência do perdão e da reconcilia-ção. Todos estavam ou passaram por uma profunda situação de separação, de infidelidade, de traição ao Mestre. Foi ele que os resgatou, reconciliou e reabilitou. Ele, o único justo, atraiçoado e abandonado pelos discípulos, insultado e condenado inocente, uma vez ressus-citado, não teve a ambição de vingar-se, de pedir justiça contra ninguém ou de invocar a maldição de Deus. Pelo contrário, na sua primeira aparição aos discípulos, infundiu sobre eles o seu Espírito e enviou-os como promotores de reconciliação com Deus e entre os homens (cf. Jo 20,21-23). Esta é a vingança e a justiça de Deus: o dom do Espírito reconciliador.

5. Uma Igreja reconciliada e reconciliadora

Esta é a missão fundamental da Igreja: reunir na família do Pai os irmãos e irmãs que andam dispersos, perdidos, iludidos, feridos, abandonados e sem dignidade. Uma Igreja que se entende a si mesma como comunidade de gente reconciliada gratuitamente por Deus, que fez a experiência pessoal de se sentir amada e perdoada, apesar da sua situação de pe-cadora, perseguidora, corrupta, infiel. Por isso, é gente que se tornou compreensiva e mise-ricordiosa para com os outros.

O primeiro fruto desta parábola é conhecer assim o Coração de Deus, Pai misericordioso, benevolente e eternamente fiel; o sentir-se pessoalmente, amado, perdoado e reconci-liado. Sentir-se filho/a que o Pai encoraja e em quem sempre confia, apesar de conhecer a sua fraqueza e instabilidade. Foi o Coração do Pai, manifestado nos gestos concretos de Je-sus, que mudou para sempre a vida dos discípulos, de Maria Madalena, de Zaqueu… e fez deles anunciadores e operadores de misericórdia e de paz. A cada um/a de nós se dirige par-ticularmente a primeira parte da parábola. Somos individualmente esse Filho iludido e egoís-ta, que aprendeu a conhecer o coração do Pai, quando foi acolhido de coração aberto e misericordioso.
A nós se dirige também a segunda parte da parábola, no convite dirigido ao irmão mais velho, para que, como o Pai, abra o coração ao irmão que se afastou, o acolha de re-gresso e o reintegre festivamente na família. É assim que nasce a Igreja e este é o núcleo central da sua missão, como bem entendeu S. Paulo:

"Foi Deus quem reconciliou o mundo consigo, emCristo, não imputando aos homens os seus pecados, e pondo em nós a palavra da reconciliação. É em nome de Cristo, por-tanto, que exercemos as funções de embaixadores e é Deus quem, por nosso intermédio, vos exorta. Em nome de Cristo vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus" (2Co 5,19-21).

É com esta convicção que o papa Francisco apela a uma Igreja de portas abertas, uma Igreja, na qual se sinta o odor da misericórdia para com os que caem, que erram e se afas-tam; uma Igreja que nunca exclui ninguém. Sem negar ou escamotear a seriedade do Evan-gelho e sem meias-palavras para com os comportamentos que o contradizem, Francisco ne-ga-se a julgar e a condenar aqueles que assumem essas atitudes. Por exemplo, insiste que aqueles que sentem a dor e a frustração de um matrimónio fracassado, não podem ser dei-xados à porta da Igreja, mas devem sentir o seu carinho materno e o acolhimento dos ir-mãos; que o respeito e proximidade dos que têm comportamentos desviantes não significa a aprovação do seu modo de vida, mas oferta de acolhimento fraterna do amor reconciliador do Pai.
Sentindo-se sempre pecadora e imperfeita, a comunidade dos que seguem Jesus é constantemente movida pela misericórdia de Deus que a reconcilia e a recria. É assim em cada matrimónio e em cada família, em cada paróquia e movimento, em cada diocese e na Igreja inteira. O jubileu da misericórdia há de servir para mudar a nossa mente e o nosso coração, sobre a maneira de entender Deus e a Igreja, para que, a partir dos nossos próprios comportamentos, sejamos todos "embaixadores da reconciliação" em todas as situações degradadas do mundo.
Particular importância assume, neste ano jubilar, a celebração do sacramento da re-conciliação. Através dele se manifesta, de modo muito especial, a atitude acolhedora e a alegria do Pai pelo aproximar-se de cada filho/a que reencontra a casa, a dignidade, a ener-gia e a esperança. Trata-se de um encontro pessoal com Deus, que se realiza na comunida-de, através de um irmão que age em seu nome e como servidor do amor de Deus. O seu ca-ráter pessoal conjuga-se, pois, com a dimensão comunitária, que está sempre presente a recordar a missão de todos no caminho fundamental da reconciliação com Deus e entre os irmãos.
É muito importante que aqueles a quem se confia esta missão fundamental sejam pessoas profundamente tocadas pela misericórdia de Deus e pelo exemplo do Senhor Jesus no seu íntimo e nas suas atitudes, para que não contradigam com o seu modo de agir o tesouro de ternura e acolhimento que levam consigo. Não foram enviados como juízes (como este também não é "o tribunal da penitência"), mas como portadores de misericórdia e de bênção. Não vão em próprio nome, mas em nome de Deus e inseridos numa comunidade eclesial que lhes confia este ministério fundamental. Devem, por isso, procurar transmitir este mesmo carinho na forma de acolher os irmãos/ãs que os procuram.
É importante, além disso, que entendamos todos este sacramento à luz da parábola de hoje. A reconciliação não é um serviço de lavar roupa nem uma amnistia, onde se vai expor as manchas ou os débitos, para serem cancelados, por ação de um detergente ou anulador misterioso e poderoso (ou a tecla "delete"). É o (re)encontro com o Pai e com os irmãos, dos quais nos afastámos, que ofendemos e lesámos mais ou menos seriamente. É o reconhecer o mal que fizemos a nós mesmos e, por via disso, o escândalo para outros e a omissão do bem que não fizemos.
O reencontro sacramental com a misericórdia e o coração do Pai, tem, sim, uma di-mensão em relação ao passado, mas não como uma amnistia de tipo judicial que anule o passado, pois o passado não se pode mudar. O que diz é que Deus declara que não olha mais para o que passou, que abre para nós uma nova página, sem recriminações, que a alegria de voltarmos o compensa largamente das penas que lhe causámos, que a vida está adiante pa-ra ser reconstruída e vivida. Aí é que se situa a força do sacramento. Entendendo/acolhendo o Espírito do Senhor e o amor que ele gera, partimos com coração novo e nova esperança para a vida. A reconciliação é refazer a vida com Deus e com os outros, de um modo novo.
Assim se entende que Jesus diga: Se não perdoardes" aos homens as suas ofensas, (Mt 6,14s). À primeira vista, dá a im-também o vosso Pai do céu não perdoará as vossas"pressão que voltamos à imagem do Deus vingativo que nos recompensa ou perdoa, segundo a medida dos nossos próprios comportamentos. O que esta expressão de Jesus nos diz é outra coisa, que se poderia exprimir assim: Se não perdoardes, significa que não encontras-tes o coração misericordioso do Pai. Estais ainda no vosso pecado e ligados aos sentimentos de ódio, divisão e revanchismo que vos tiram a saúde corporal e espiritual e destroem os vossos relacionamentos. Praticastes um rito, mas não mudastes o coração. Deus não perdoa (não liberta), não significa que Ele vos fechou o coração. Significa é que vós não lhe abristes o vosso e, por isso, continuais enleados na trama das emoções que vos asfixiam, ao passo que o encontro verdadeiro com Deus vos libertaria (perdoaria/recriaria).
Um dia, na confissão, um senhor ajoelhou-se e disse-me mais ou menos assim "Senhor padre, ajude-me porque estou em dificuldade para me confessar. É que eu quero perdoar, mas não consigo esquecer. Eu tinha semeado abóboras na minha horta. Quando as plantas estavam já cresciditas, alguém, que me quer mal, foi lá e pisou tudo, dando cabo das abóbo-ras. Este ano, ficámos sem abóboras, porque já era tarde para plantar outras. Eu quase ado-eci, pensando nas abóboras. Os vizinhos, sabendo disto, vão oferecendo das abóboras deles, mas eu, de raiva, não as consigo comer e já disse à minha mulher que não cozesse mais abó-boras. Vou ao mercado e, se vejo abóboras saio, esquecendo o que ia comprar… A verdade é que, só o pensar em abóboras me faz subir a tensão arterial". No nosso diálogo, entre outras coisas, eu disse-lhe: "Acha que vale a pena? Você já perdeu as abóboras por causa da malva-dez de alguém; vale a pena perder também a saúde por causa disso?".
Nesse dia, penso que entendi um pouco mais o quê e porquê Deus não pode perdoar se não perdoamos. É que o perdão não é uma anulação do passado, mas a construção dono seu íntimo e nas suas atitudes, para que não contradigam com o seu modo de agir o te-souro de ternura e acolhimento que levam consigo. Não foram enviados como juízes (como este também não é "o tribunal da penitência"), mas como portadores de misericórdia e de bênção. Não vão em próprio nome, mas em nome de Deus e inseridos numa comunidade eclesial que lhes confia este ministério fundamental. Devem, por isso, procurar transmitir este mesmo carinho na forma de acolher os irmãos/ãs que os procuram.
É importante, além disso, que entendamos todos este sacramento à luz da parábola de hoje. A reconciliação não é um serviço de lavar roupa nem uma amnistia, onde se vai expor as manchas ou os débitos, para serem cancelados, por ação de um detergente ou anulador misterioso e poderoso (ou a tecla "delete"). É o (re)encontro com o Pai e com os irmãos, dos quais nos afastámos, que ofendemos e lesámos mais ou menos seriamente. É o reconhecer o mal que fizemos a nós mesmos e, por via disso, o escândalo para outros e a omissão do bem que não fizemos.
O reencontro sacramental com a misericórdia e o coração do Pai, tem, sim, uma di-mensão em relação ao passado, mas não como uma amnistia de tipo judicial que anule o passado, pois o passado não se pode mudar. O que diz é que Deus declara que não olha mais para o que passou, que abre para nós uma nova página, sem recriminações, que a alegria de voltarmos o compensa largamente das penas que lhe causámos, que a vida está adiante pa-ra ser reconstruída e vivida. Aí é que se situa a força do sacramento. Entendendo/acolhendo o Espírito do Senhor e o amor que ele gera, partimos com coração novo e nova esperança para a vida. A reconciliação é refazer a vida com Deus e com os outros, de um modo novo.
Assim se entende que Jesus diga: Se não perdoardes" aos homens as suas ofensas, (Mt 6,14s). À primeira vista, dá a im-também o vosso Pai do céu não perdoará as vossas"pressão que voltamos à imagem do Deus vingativo que nos recompensa ou perdoa, segundo a medida dos nossos próprios comportamentos. O que esta expressão de Jesus nos diz é outra coisa, que se poderia exprimir assim: Se não perdoardes, significa que não encontras-tes o coração misericordioso do Pai. Estais ainda no vosso pecado e ligados aos sentimentos de ódio, divisão e revanchismo que vos tiram a saúde corporal e espiritual e destroem os vossos relacionamentos. Praticastes um rito, mas não mudastes o coração. Deus não perdoa (não liberta), não significa que Ele vos fechou o coração. Significa é que vós não lhe abristes o vosso e, por isso, continuais enleados na trama das emoções que vos asfixiam, ao passo que o encontro verdadeiro com Deus vos libertaria (perdoaria/recriaria).
Um dia, na confissão, um senhor ajoelhou-se e disse-me mais ou menos assim "Senhor padre, ajude-me porque estou em dificuldade para me confessar. É que eu quero perdoar, mas não consigo esquecer. Eu tinha semeado abóboras na minha horta. Quando as plantas estavam já cresciditas, alguém, que me quer mal, foi lá e pisou tudo, dando cabo das abóbo-ras. Este ano, ficámos sem abóboras, porque já era tarde para plantar outras. Eu quase ado-eci, pensando nas abóboras. Os vizinhos, sabendo disto, vão oferecendo das abóboras deles, mas eu, de raiva, não as consigo comer e já disse à minha mulher que não cozesse mais abóboras. Vou ao mercado e, se vejo abóboras saio, esquecendo o que ia comprar… A verdade é que, só o pensar em abóboras me faz subir a tensão arterial". No nosso diálogo, entre outras coisas, eu disse-lhe: "Acha que vale a pena? Você já perdeu as abóboras por causa da malva-dez de alguém; vale a pena perder também a saúde por causa disso?".
Nesse dia, penso que entendi um pouco mais o quê e porquê Deus não pode perdoar se não perdoamos. É que o perdão não é uma anulação do passado, mas a construção dono seu íntimo e nas suas atitudes, para que não contradigam com o seu modo de agir o te-souro de ternura e acolhimento que levam consigo. Não foram enviados como juízes (como este também não é "o tribunal da penitência"), mas como portadores de misericórdia e de bênção. Não vão em próprio nome, mas em nome de Deus e inseridos numa comunidade eclesial que lhes confia este ministério fundamental. Devem, por isso, procurar transmitir este mesmo carinho na forma de acolher os irmãos/ãs que os procuram.
É importante, além disso, que entendamos todos este sacramento à luz da parábola de hoje. A reconciliação não é um serviço de lavar roupa nem uma amnistia, onde se vai expor as manchas ou os débitos, para serem cancelados, por ação de um detergente ou anulador misterioso e poderoso (ou a tecla "delete"). É o (re)encontro com o Pai e com os irmãos, dos quais nos afastámos, que ofendemos e lesámos mais ou menos seriamente. É o reconhecer o mal que fizemos a nós mesmos e, por via disso, o escândalo para outros e a omissão do bem que não fizemos.
O reencontro sacramental com a misericórdia e o coração do Pai, tem, sim, uma di-mensão em relação ao passado, mas não como uma amnistia de tipo judicial que anule o passado, pois o passado não se pode mudar. O que diz é que Deus declara que não olha mais para o que passou, que abre para nós uma nova página, sem recriminações, que a alegria de voltarmos o compensa largamente das penas que lhe causámos, que a vida está adiante pa-ra ser reconstruída e vivida. Aí é que se situa a força do sacramento. Entendendo/acolhendo o Espírito do Senhor e o amor que ele gera, partimos com coração novo e nova esperança para a vida. A reconciliação é refazer a vida com Deus e com os outros, de um modo novo.
Assim se entende que Jesus diga: "Se não perdoardes aos homens as suas ofensas, também o vosso Pai do céu  não perdoará as vossas" (Mt 6,14s). À primeira vista, dá a impressão que voltamos à imagem do Deus vingativo que nos recompensa ou perdoa, segundo a medida dos nossos próprios comportamentos. O que esta expressão de Jesus nos diz é outra coisa, que se poderia exprimir assim: Se não perdoardes, significa que não encontras-tes o coração misericordioso do Pai. Estais ainda no vosso pecado e ligados aos sentimentos de ódio, divisão e revanchismo que vos tiram a saúde corporal e espiritual e destroem os vossos relacionamentos. Praticastes um rito, mas não mudastes o coração. Deus não perdoa (não liberta), não significa que Ele vos fechou o coração. Significa é que vós não lhe abristes o vosso e, por isso, continuais enleados na trama das emoções que vos asfixiam, ao passo que o encontro verdadeiro com Deus vos libertaria (perdoaria/recriaria).
Um dia, na confissão, um senhor ajoelhou-se e disse-me mais ou menos assim "Senhor padre, ajude-me porque estou em dificuldade para me confessar. É que eu quero perdoar, mas não consigo esquecer. Eu tinha semeado abóboras na minha horta. Quando as plantas estavam já cresciditas, alguém, que me quer mal, foi lá e pisou tudo, dando cabo das abóbo-ras. Este ano, ficámos sem abóboras, porque já era tarde para plantar outras. Eu quase ado-eci, pensando nas abóboras. Os vizinhos, sabendo disto, vão oferecendo das abóboras deles, mas eu, de raiva, não as consigo comer e já disse à minha mulher que não cozesse mais abó-boras. Vou ao mercado e, se vejo abóboras saio, esquecendo o que ia comprar… A verdade é que, só o pensar em abóboras me faz subir a tensão arterial". No nosso diálogo, entre outras coisas, eu disse-lhe: "Acha que vale a pena? Você já perdeu as abóboras por causa da malva-dez de alguém; vale a pena perder também a saúde por causa disso?".
Nesse dia, penso que entendi um pouco mais o quê e porquê Deus não pode perdoar se não perdoamos. É que o perdão não é uma anulação do passado, mas a construção do futuro através do encontro com a misericórdia de Deus que nos dá o seu Espírito. Deus perdoa sempre, espera sempre o filho, mas só pode agir quando ele se abre ao seu carinho, à sua força e aceita reintegrar-se na família. O perdão é colocar-nos, com coração novo, no caminho certo, a pensar e agir, de acordo com a misericórdia que recebemos de Deus. É re-fazer os laços quebrados e a justiça infringida, dar a atenção e o carinho esquecidos, abrir-se à generosidade e solidariedade, voltar aos braços do Pai, de onde se partira com ilusões re-dutoras e egoístas. Por outro lado, é necessário igualmente que os outros irmãos acolham, que abram o coração, que ajudem à reintegração e façam festa como o Pai, para ajudar a tratar as feridas do irmão e das suas debilidades e ilusões. É por isso que a Igreja é um "hospital de campanha", como diz o papa Francisco.

6. Recriar, Reparar, Reconciliar

A partir desta consciência é que nós, discípulos do Senhor Jesus, como pessoas e como Igreja, somos chamados a anunciar a Boa Nova do amor reconciliador de Deus a todo o mundo. Ele torna-nos sensíveis aos sistemas aparentemente justos, mas que são apenas a perpetuação da injustiça e da degradação. Para concluir, dou apenas dois exemplos de entre os muitos que se poderiam citar.
À luz desta palavra, percebemos a hipocrisia de uma justiça que se limita a julgar, executar ou meter na prisão aqueles que atentam contra a lei. Sem querer simplificar aquilo que é muito complexo, parece-me que o nosso atual sistema jurídico prisional deveria olhar com atenção para a lógica desta parábola. Se o tempo de reclusão fosse virado, acima de tudo, para a recuperação da dignidade e da autoestima das pessoas e das suas famílias, para reparar traumas e feridas e criar condições de recomeçar a vida; então esse tempo poderia realmente preparar um verdadeiro regresso a casa, para quem se deixou levar pela ilusão do roubo, da violência e da morte. Seria muito mais barato, mais humano e mais digno do que o sistema de "enjaulamento" atual que, na maior parte dos casos, leva a aumentar a frustra-ção, a novos desacatos e novas prisões. Por isso o sistema está a abarrotar e sem soluções. Temos de escolher se optamos pelo perfil do irmão mais velho, senhor de uma moral autos-suficiente, hipócrita e punitiva, ou pela lógica misericordiosa e reabilitadora do Pai.
O mesmo se passa com a questão do terrorismo, dos refugiados, das ideologias segregacionistas. É sempre questão daqueles que se consideram justos e protegidos e querem deixar fora quantos, por erro ou necessidade, vêm pôr em causa as suas prerrogativas e co-modidades. Isto, sem mencionar que, muitos desses que se julgam com tanta razão e justiça têm uma grande responsabilidade na situação em que se encontram os desfavorecidos. A globalização veio mostrar que somos todos interdependentes e chamados a construir a casa comum da humanidade, a família humana. A solução não está no erguer de mais muros para deixar de fora os deserdados ou lançar mais bombas. Isso só faz aumentar o número dos miseráveis e o caminho seguro para destruir a sociedade, pois a multidão dos miseráveis vai aumentar a pressão e abater todos os muros de defesa, como já está acontecendo.
Estes são apenas dois campos dos nossos dias que devem de ser repensados neste ano da misericórdia. Mas cada um tem o seu pequeno ou grande mundo para reler ao sol aca-lentador do Pai da Misericórdia, bem patente nesta parábola. Que mundo queremos construir? O da comodidade e hipocrisia de poucos com a exclusão daqueles que, com ou sem culpa própria, se encontram na miséria? Essa é a lógica do irmão mais velho. Ou queremos lutar por um mundo de misericórdia, de fraternidade, de abertura do coração aos que er-ram, aos que são condenados e excluídos… e a nós próprios, para a construção de um mun-do melhor?
Que o Pai da misericórdia permita que abramos o nosso coração ao seu, que está sempre aberto para nós, a fim de que possamos escutar com alegria a bem-aventurança de Jesus:

"Bem-aventurados os misericordiosos, porque serão cobertos de misericórdia…
Bem-aventurados os obreiros da paz, porque serão chamados filhos de Deus" (Mt 5,7.9)



Catequeses quaresmais verdadeiras
 Escolas de Fé!



D. José Ornelas Carvalho



  CATEQUESES QUARESMAIS


Deus Misericordioso e Benevolente Ex 33,18-34,9

Leitura do Livro do Êxodo

18 Moisés disse a Deus: «Mostra-me a tua glória.»
19 E Deus respondeu: «Farei passar diante de ti toda a minha bondade,
e proclamarei diante de ti o nome do Senhor.
Concedo a minha benevolência a quem Eu quiser,
e uso de misericórdia com quem for do meu agrado.»
20 E acrescentou: «Mas tu não poderás ver a minha face,
pois o homem não pode contemplar-me e continuar a viver.»
21 O Senhor disse: «Está aqui um lugar próximo de mim;
conservar-te-ás sobre o rochedo.
22 Quando a minha glória passar, colocar-te-ei na cavidade do rochedo
e cobrir-te-ei com a minha mão, até que Eu tenha passado.
23 Retirarei a mão, e poderás então ver-me por detrás.
Quanto à minha face, ela não pode ser vista.» …
34, 5 O Senhor desceu na nuvem e, passando junto dele,
pronunciou o nome do Senhor.
6 O Senhor passou em frente dele e exclamou:
«O Senhor! O Senhor!
Deus misericordioso e benevolente,
lento para a ira e cheio de ternura e de fidelidade,
7 que mantém a sua graça até à milésima geração,
que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado,
mas não declara inocente o culpado
e pune o crime dos pais nos filhos, e nos filhos dos seus filhos
até à terceira e à quarta geração.»
8 Moisés curvou-se imediatamente até ao chão
e prostrou-se em adoração, 9 dizendo:
«Se, entretanto, alcancei graça aos teus olhos, ó Senhor,
vem, por favor, caminhar no meio de nós, pois este é um povo de cerviz dura.
Mas perdoa-nos as nossas iniquidades e os nossos pecados e aceita-nos como propriedade tua.»
Palavra do Senhor


JUBILEU DA MISERICÓRDIA
Catequeses de Quaresma - 1
Setúbal, 2016

I O DEUS DA JUSTIÇA E DA MISERICÓRDIA

Neste tempo de quaresma, durante o ano santo da misericórdia que estamos a viver, todos somos convidados a dar espaço e especial atenção ao dom que estes tempos repre-sentam para cada um de nós, para as nossas famílias e comunidades, para toda a Igreja. De facto, não queremos que este tempo de graça passe pela nossa vida apenas como ritual que se realiza com um certo folclore que componha uma aparência externa de piedade, deixan-do tudo na mesma nos nossos sentimentos e atitudes.
Daí nasceu esta iniciativa das catequeses quaresmais. Procuraremos aprofundar o sen-tido deste tempo quaresmal e do apelo do papa para que nos deixemos fascinar a transfor-mar pelo rosto misericordioso de Deus.
Da minha parte, iniciando o serviço de bispo entre vós, achei muito importante come-çar uma reflexão sobre este tema fundamental e partilhá-lo convosco, à luz da Palavra de Deus. Desejaria muito que este fosse o nosso caminho na construção da nossa Igreja de Se-túbal: caminhar à luz da Palavra de Deus, confortados e animados pelo seu Coração de Mise-ricórdia.
Hoje, a nossa atenção dirige-se às bases da misericórdia, procurando o rosto do nosso Pai, o Senhor e Criador, deixando-nos guiar pela palavra e exemplo dos profetas e sobretudo de Jesus. É Ele quem conhece o Pai e no-lo dá a conhecer. Nas suas palavras e nos seus ges-tos, descobrimos, em forma humana o Coração de Deus.

1. O Criador e Senhor do Universo e da História
1.1 O homem no projeto de Deus

A Bíblia abre-se com o quadro solene da criação, oferecendo a imagem de Deus como Criador e Senhor do Universo. Pela sua Palavra, ele domina todo o que existe e torna possí-vel a vida sobre a terra. Olhando para a natureza, o homem inteligente sente-se, ao mesmo tempo maravilhado e insignificante perante a manifestação da majestade e do poder de Deus, como canta o autor do Salmo 8:
Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra!...
Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste:
que é o homem para dele te lembrares, o ser humano, para dele te ocupares?(Sl 8,1-5)

Este salmo belíssimo exprime, logo na primeira estrofe, três sentimentos complemen-tares:
a) Uma sensação de assombro, admiração e respeito, que constitui certamente a pri-meira e fundamental atitude da inteligência do ser humano perante Deus.
b) Por outro lado, o espetáculo da beleza, da grandeza e da portentosa energia que se constata no universo e na natureza mais próxima, faz-nos sentir pequenos e frágeis. Mesmo as descobertas científicas mais recentes dão-nos a percepção de que estamos apenas comeÇando a vislumbrar a grandeza do universo em que estamos inseridos, sentindo-nos insigni-ficantes e até temerosos perante tal maravilha.
c) A partir destes, surge um terceiro sentimento de encantada surpresa: o carinho de Deus para com o ser humano: "que é o homem para dele te lembrares, o ser humano, para . Se a beleza e a grandeza do universo fazem entrever a majestade subli-dele te ocupares?"me e fascinante de Deus e o seu poder, o salmista sente-se particularmente fascinado pela atenção e o carinho de Deus para com a criação e sobretudo para com a sua criatura prefe-rida, o ser humano. Um ser frágil, mas querido por Deus, como uma criança que nasce nas nossas famílias: não é autossuficiente, não entende nem sabe exprimir-se como os adultos, mas é o centro da atenção, dos cuidados e da ternura de todos os que a rodeiam.

1.2 Um homem frágil, imperfeito e pecador

Mas nem sempre a imagem de Deus é assim compreendida e acolhida. O sintoma mais profundo da limitação humana é precisamente a incapacidade de entender e inserir-se nes-se projeto de Deus. Os textos sobre o pecado, que encontramos igualmente nas primeiras páginas da Bíblia (cf. particularmente Gn 3-4), dão-nos bem a ideia dessa realidade imperfei-ta em que nós todos vivemos.
Estes textos não são a história das origens do mundo e da vida e menos ainda pre-tendem falar de um mundo criado perfeito por Deus e corrompido em seguida, pelo pecado do homem, a que, muito mais tarde, se começou a chamar "pecado original". Estas narra-ções, que representam uma forma muito profunda de pensar sobre as realidades fundamen-tais da vida, não nos vêm dar notícias de como surgiu o mundo e também não falam de "pe-cado original". O que nos dizem é que Deus está na origem deste mundo maravilhoso e que no-lo confiou, como dom fundamental, para nele vivermos, para o guardarmos e desenvol-vermos. Além disso, deu-nos também indicações (a sua Palavra, o "livro de instruções") so-bre o modo de estar neste mundo e de usá-lo sem estragar, em ordem a podermos progre-dir em harmonia e atingir a maioridade do ser humano, dentro da perspetiva do seu Criador.
Com imagens simbólicas muito sugestivas, a narração bíblica diz que Deus plantou um jardim maravilhoso e lá colocou o homem que tinha criado (como faz um papá, embevecido e enternecido com o primeiro filho que lhe nasceu!). Colocando o homem/mulher neste dom fundamental que é o mundo, Deus disse que podiam comer de tudo o que lá se encon-trava, mas que não estendessem a mão para uma árvore especialmente importante, que se encontra precisamente no centro do jardim (a árvore do bem e do mal; a árvore da totalida-de da vida).
Esta árvore não está dissimulada ou escondida num canto, mas precisamente no cen-tro da realidade existencial e diz que nós, humanos, como pessoas e como sociedade, somos maravilhosos, mas não somos a totalidade do universo, não temos a totalidade da vida, nem do conhecimento. Há que saber que há realidades que nos transcendem. Que eu, como indi-víduo, como sociedade, como humanidade, não posso determinar tudo. Que o bem e o mal, não podem ser decididos só de acordo com aquilo que eu penso, com os meus interesses ou vontades de momento. Que, na altura em que eu quiser ser o senhor e dono de tudo, vou reduzir a realidade às dimensões limitadas da minha compreensão, do meu interesse e do meu poder. Aceitar a senhoria do Senhor e do seu "livro de instruções", não é uma limitação, mas, bem pelo contrário, a forma de aceder à liberdade, à sabedoria e à vida plena de Deus; Ele que é poderoso e nos quer bem. Por isso, essa árvore da vida tem de estar sempre no  centro da realidade existencial de cada um de nós, e do nosso mundo. O primeiro aviso do "Livro de Instruções" é: não tirem Deus e o seu projeto da vossa vida, da vossa família, da vossa sociedade, pois, de contrário ficareis reduzidos à vossa insignificância. Não tentem manipula-lo pois, desse modo, não o aceitariam com Deus e Senhor e ficariam privados da sua luz, da sua força, do seu carinho.
O discurso da serpente (figura simbólica da humanidade inteligente, mas não sábia) é, à primeira vista, interessante e fascinante. Ela diz, substancialmente: Não se deixem levar por esses discursos; Deus é invejoso da vossa felicidade e quer manter-vos pequenos e sub-missos; essa é uma ideologia de escravos e de gente que não sabe ou não quer pensar. Li-bertem-se dessa submissão se querem 
deslumbre da adolescência humana, fasci-nada pelo sonho superficial da liberdade.
Na narração bíblica, este modo de pensar Deus e a sua ação leva a ver Deus como con-corrente, adversário e até inimigo da liberdade, da vida, da felicidade e realização huma-nas. O resultado da não integração das diretivas do "livro de instruções", que é a Palavra de Deus, acaba por conduzir a humanidade, à perda da dignidade – – "viram que estavam nus"e da harmonia solidária entre os humanos e entre estes e a terra. Abolindo a figura do Pai, torna-se muito mais difícil aceitar a condição de irmãos/ãs. Além disso, no relacionamento entre o homem e Deus interpõe-se uma barreira: "Ouvi o ruído dos teus passos no jardim e . O medo é a primeira manifestação da desarmonia causa-escondi-me, porque tenho medo"da pelo pecado ou afastamento de Deus. O medo é sinal de estranheza e distância, ao paço que o amor afasta o medo.
O discurso da serpente mostra que, sendo limitados, ao buscar a felicidade – aquilo que todos desejamos – tantas vezes nos enganamos. Alguns exemplos reais podem ajudar a compreender aquilo que nos diz a Palavra do livro do Génesis. Uma criança pequena gosta de brincar com tudo o que brilha e a sua curiosidade leva-a a explorar o mundo, a divertir-se e a sentir alegria e prazer com tudo isso. Os pais, que lhe querem bem, estimulam esta sede de vida e de conhecimento, mas, ao mesmo tempo, defendem o filho/a de situações perigo-sas, que podem pôr em risco a sua vida, como brincar com o fogo ou facas, ou comer exage-radamente aquilo de que gosta, mesmo que isso, no momento, constitua uma contrariedade para a criança. Aquele que se droga, busca a felicidade, mas quanto mais a busca desse mo-do, mais se aproxima da morte. Os sinais de sentido proibido e as luzes vermelhas do trânsi-to não são um atentado à minha liberdade. Dizem-me que há todos os verdes e todos os outros sentidos para circular, mas que há manobras que põem em risco a minha vida e a dos outros.
Por isso, na perspetiva bíblica, a Palavra de Deus, ou Lei de Deus (na realidade, em he-braico, este conceito não soa como "Lei", mas sim como "ensinamento, "instrução") é esse "livro de instruções" da humanidade, é a expressão do carinho de Deus para com as suas criaturas, um convite à inteligência, à sabedoria do coração, ao sucesso, à felicidade e à vida. Ao longo dos tempos, Deus foi sempre acompanhando, orientando, corrigindo e chamando de volta a humanidade, através desta Palavra, para tornar possível a vida e a história.
Pelo contrário, aquilo que chamamos pecado, é, antes de mais, uma falta de sabedo-ria, tantas vezes, uma dramática busca ilusória e egoísta da felicidade, que acaba por ter consequências graves para a pessoa e para a comunidade humana. Na realidade, buscando a própria autonomia longe de Deus que é a fonte da vida, encontramo-nos gelados e sem vida,


como os planetas mais afastados do sol, encerrados na nossa limitação e isolamento de se-res frágeis e sujeitos à lei da morte.
Isto nos faz entender uma distinção entre "pecado" e "culpa", que escapa muitas ve-zes ao nosso modo de olhar a vida. Na linguagem da Bíblia, particularmente em S. Paulo, o pecado, não se identifica simplesmente com "os pecados", os erros e faltas que cometemos dia a dia. O Pecado é essa incapacidade radical do meu ser, que não possui em plenitude a vida, em termos existenciais, morais e espirituais. É evidente que os meus erros concretos são fruto das minhas opções, mas inserem-se neste ser imperfeito que eu sou. Uma criança que vem ao mundo assume esta natureza. Se queremos utilizar esta linguagem, nasce em pecado, mas não tem nenhuma culpa de nascer assim, limitado em termos de vida, de sabe-doria, de capacidade moral. Deus sabe que somos assim, pessoas que ele criou pequenas para que cresçam, imperfeitas para que amadureçam, ingénuos para que aprendam. Somos uma humanidade a caminho e a Palavra de Deus é o guia da estrada da felicidade e da vida.


1.3 Deus e o homem frágil e pecador

É a esta luz que podemos entender a atitude de Deus para connosco. Tenhamos pre-sente, antes de mais, que, em termos reais, os nossos pecados não fazem mal a Deus dire-tamente. Ele é um Deus transcendente que nós não podemos minimamente pôr em causa, como os murros de uma criança pequena, por brincadeira ou por birra, não põem em che-que a integridade do pai. Se Deus sofre com os nossos pecados é apenas porque nos ama e não é indiferente ao mal que causamos a nós próprios, àqueles que nos amam e ao ambien-te em que habitamos. É por isso que Ele considera feito a si aquilo que fazemos aos mais pequenos. Não é simplesmente por infringir a Lei do grande Senhor de todos, mas porque infringe a ligação de amor que Ele tem com todos os seus filhos e filhas. Jesus recorda isso mesmo ao dizer: "Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus " (Mt 16,18). Se o anjos, no Céu, veem constantemente a face de meu Pai que está no Céunosso pecado pode afetar a Deus e fazê-lo "sofrer", é só porque Ele nos ama a todos.
Esta constatação é muito importante, quando pretendemos falar da justiça de Deus. Em primeiro lugar, tenhamos em conta que não podemos transpor para Deus os mesmos critérios que se aplicam à justiça humana. Nós temos um código penal porque nos sentimos frágeis perante o mal que nos podem causar. Os tribunais aplicam a lei como punição dos culpados e possível indemnização das vítimas, para repor a justiça e dissuadir novos delitos. Deus não precisa de usar a força contra ninguém para se defender. Por isso, não tem inimi-gos e ama mesmo os que se lhe opõem, esperando o seu regresso à razão, ao bom senso e à vida.
Há, além disso, uma grande diferença de conceitos entre a mentalidade bíblica e a nossa, no que diz respeito à justiça. O símbolo da nossa justiça é uma mulher com os olhos vendados (porque não faz distinção de pessoas), com a balança numa mão (para aferir e ponderar com exatidão os casos) e uma espada na outra mão (para punir os culpados). Tra-ta-se de uma justiça equitativa, em que a questão entre duas partes é dirimida pela aplica-ção da lei. No contexto bíblico, o fundamento da justiça é algo diferente. A justiça é uma questão relacional entre as pessoas. Justiça não significa que todos são tratados por igual, mas são tratados de acordo com aquilo que são, no contexto da relação. Uma justa relação entre pai e filho, por exemplo, não quer dizer que os dois são tratados por igual. O pai é jus-
to quando se comporta como pai e o filho é justo quando se comporta como filho, isto é, quando "faz jus", é coerente, com aquilo que é.
Quando se aplica a Deus este princípio de justiça relacional, chegamos a conclusões surpreendentes, que tantas vezes não temos em conta. Deus e Israel estão ligados por uma aliança, que foi oferecida por Deus e aceite pelo povo. Deus sabe que, nesta aliança, Israel não será sempre fiel e justo. Isso não significa que Ele vai comportar-se do mesmo modo. Ele é Deus e não homem. O que Ele mesmo revelou de si mesmo, ouvimo-lo dizer na leitura com que começámos esta reflexão: "O Senhor! O Senhor! Deus misericordioso e benevolente, (Ex 34,6). lento para a ira e cheio de ternura e de fidelidade"
Deus pronuncia estas palavras passando diante de Moisés, quando o povo tinha traído gravemente a aliança. Ele afirma solenemente que permanecerá sempre fiel, mesmo quan-do o seu povo não compreende, não dá valor, não tem sabedoria e força suficientes para manter o relacionamento a que se comprometeu. O relacionamento da aliança entre Deus santo e justo e um povo débil, pecador e frequentemente infiel só pode possa manter-se se Deus for realmente capaz de perdoar e de estender o seu braço, quando o do povo se enco-lhe. Só assim esta ligação vital pode subsistir. É assim que Deus é justo, que ao seu "faz jus"nome. Assim pois, quando se faz apelo à justiça de Deus, não se pede algo diferente da sua misericórdia e do seu amor. De facto, quando há ofensa ou infidelidade na relação, o verda-deiro amor tem de se manifestar como misericórdia. É isso que acontece sempre com Deus.
O profeta Oseias usa imagens eloquentes para falar desta fidelidade amorosa de Deus para com o seu povo. Ele compara o relacionamento da Aliança à sua própria experiência de amar uma mulher que o atraiçoa (cf. Os 1-3). O marido traído parece perder a cabeça: ame-aça destruir a amada e os seus amantes, denunciá-la e humilhá-la na praça pública, fechá-la e vetá-la ao esquecimento. Mas o amor fala mais forte e acaba sempre por tentar de novo reconstruir o carinho perdido e refazer o namoro de outrora: "conduzi-la-ei ao deserto e (Os 1,2-16). falar-lhe-ei ao coração…"
O mesmo profeta usa o relacionamento carinhoso do pai para exprimir a mesma atitu-de de Deus, feita de paixão, revolta sentida e compaixão-misericórdia, em nome da coerên-cia consigo mesmo, que é a coerência do amor:
"Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei o meu filho… ensinei-o a an-dar, tomava-o nos braços… fui para ele como quem levanta uma criancinha contra o rosto…
Mas eles afastaram-se de mim… não reconheceram que era eu quem cuidava deles… o meu povo é inclinado a afastar-se de mim…
Voltará para o Egito… A espada devastará as suas cidades…
Como poderia abandonar-te, Efraim, ou entregar-te Israel?... O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas…
Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim, porque sou Deus e não um homem, o Santo, no meio de ti e não me deixo levar pela ira" (cf. Os 11)
É assim o amor de Deus: um amor apaixonado e vivo, que "sofre" porque ama, se as-sim podemos exprimir-nos em termos humanos. Deus é como marido-amante fiel e pai compassivo, que não descansa enquanto não reatar os laços rompidos e não assegurar o bem daqueles que ama.
É importante dirigir a nossa atenção para estes e tantos outros textos dos profetas, pois são eles que nos revelam o verdadeiro rosto de Deus. Os profetas são pessoas que se habituaram a contatar com Deus, na oração, na reflexão, na escuta da sua voz. Têm bem clara a consciência da própria pequenez e do próprio pecado, mas fazem igualmente a expe-riência de como o amor de Deus se tornou perdão, vida e até missão. É por isso que eles revelam ao povo o coração de Deus. Um coração apaixonado pela humanidade, que cons-tantemente oferece perdão, reconciliação e renovação da vida.

2. Jesus Cristo: A misericórdia de Deus torna-se presente na terra

2.1 Deus torna-se presente entre os pequenos, doentes e pecadores

Tudo isto que os profetas experimentaram e anunciaram encontra uma expressão muito clara na pessoa do Senhor Jesus. Deus não se limita a ser o protetor da humanidade a partir da sua transcendente omnipotência. Em Jesus, o Filho, vem fazer parte deste mun-do frágil. Vem partilhar as suas alegrias e sonhos, mas igualmente os seus dramas, sofrimen-tos e morte. Ele sente como todos os humanos, a tentação das ilusões de felicidade barata, do abstencionismo cómodo e da violência destruidora. Deus não fica a ver lá do alto da sua transcendência, nem se contenta em mandar uma corda aos que pedem ajuda, mas, em Jesus, vem ele mesmo, desce ao poço da nossa pequenez e sofrimento, e carrega-nos aos ombros, porque nos ama. Literalmente, carregou o peso das nossas dores, para nos libertar e oferecer perspetivas de dignidade, de alegria e de vida.
Sendo Filho de Deus, Jesus é o herdeiro e aquele que se parece com o Pai e com o seu modo de agir. Nos seus gestos, podemos ver, em forma humana como é que Deus nos trata, a nós, suas criaturas amadas, mas também limitadas, infiéis, pecadoras. Só pelo facto de vir para este mundo, Jesus é a expressão do amor absoluto e recreador de Deus.
E, aquilo que podemos ver é surpreendente: vindo para o meio dos homens, Jesus não assume a posição de privilégio e de poder que se imaginava que devia caraterizar os envia-dos de Deus, Senhor do universo. Pelo contrário, toma lugar entre os pobres e humildes do povo e dirige a sua ação e a sua palavra renovadora, precisamente para os que sofrem, os doentes, os pecadores. Aliás, Jesus afirma que esta é especificamente a sua missão:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor (Lc 4,18s).
Esta opção pelos pobres está longe de ser a manifestação de uma ideologia de classe, em contraposição a outras classes ou grupos sociais. Trata-se de uma opção universalizante que torna evidente que, para aceder ao favor de Deus, não há privilegiados, nem pelo poder, nem pela riqueza ou educação esmerada. Começando pelos que nunca são escutados e atendidos, Jesus mostra duas coisas: primeiro, que todos, diante de Deus são pequenos e carentes de vida e pecadores, mesmo que não se deem conta disso. Segundo, que todos têm acesso à sua misericórdia e ao seu perdão, independentemente da sua posição social ou económica e mesmo para além de considerações sobre os seus méritos morais. A todos se dirige o olhar misericordioso de Deus.
Aos olhos de Deus, ninguém tem modo de pagar o bilhete para a vida: ninguém pa-gou para entrar neste mundo e ninguém pagará para o mundo que há de vir. Só tem de tomar o transporte que lhe é oferecido de graça pela misericórdia do Pai. Nestas condições, como acontece com um Pai, no meio de um grande desastre, os gritos de um filho amado desencadeiam, com toda prioridade a "adrenalina do amor". Este é o ponto de vista de Je-sus, aquele que nos revela o coração de Deus.
O chamamento de Mateus, o publicano (Mc 2,13-17), dá-nos bem um exemplo desta inversão de valores, que escandaliza os bem-pensantes. O cobrador de impostos, deve ter pensado muitas vezes que, se algum dia encontrasse o enviado de Deus pela frente, este havia de corrê-lo a pontapés e declarar a sua maldição. Era aliás assim que o tratavam os que eram considerados mais piedosos. Mas, quando Jesus passa diante dele e, não só não o censura, mas o olha com rosto amigo e até o convida para ser dos dele e segui-lo, Mateus sente que está a viver algo de radicalmente novo naquilo que lhe tinham ensinado sobre Deus. E ficou tão contente que mandou logo preparar uma festa. E quem é que havia de convidar? Os bons e respeitáveis da cidade? Esses não poriam os pés em casa de um peca-dor para não ficarem impuros também eles. A casa encheu-se de gente como ele: prostitu-tas, publicanos corruptos e outros do género. E Jesus foi! Cá fora os bons e respeitáveis acu-savam-no de andar em muito más companhias. Lá dentro, porém, o ambiente é outro: é o retorno da dignidade, da estima, do tesouro de sentir-se amado por aquele que era conside-rado o enviado de Deus. E a vida deles mudou, porque se sentiram amados, apreciados e até enviados a anunciar e criar um mundo novo deste jeito.
Foi assim com Zaqueu, com a Madalena, e com todos os outros do primeiro grupo de seguidores de Jesus. Todos eles fizeram a experiência do fracasso dos próprios méritos, da própria justiça, das próprias forças. Quando chegou a hora da verdade, Judas atraiçoou o Mestre, Pedro negou-o e todos os outros se puseram em fuga. Paulo, o grande apóstolo apaixonado de Cristo, apesar de não o ter conhecido pessoalmente, põe neste encontro com a misericórdia de Deus o início e a base da sua vida e da sua missão. Quando era pecador e perseguia a Igreja, então é que Cristo se lhe revelou e o chamou. Por isso afirma: "Estou cru-cificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por (Gl 2,19-20). mim"
Este é também o caminho que nos é indicado, particularmente neste tempo de qua-resma: que façamos a esta experiência renovadora do amor misericordioso de Deus que dá nova orientação à nossa vida. Sem essa experiência, não se pode ser verdadeiramente cris-tão. Por isso, somos chamados a acolher o convite veemente que faz Paulo aos cristãos de Corinto: "Foi Deus quem reconciliou o mundo consigo, em Cristo, não imputando aos homens os seus pecados, e pondo em nós a palavra da reconciliação. É em nome de Cristo, portanto, que exercemos as funções de embaixadores e é Deus quem, por nosso intermédio, vos exor-ta. Em nome de Cristo vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. Aquele que não co-nheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de (2Co 5,19-21). Deus"
2.2 Uma Igreja de misericórdia
Assim é que começou a Igreja de Jesus. Nasceu da misericórdia do Pai revelada e tor-nada presente no Coração misericordioso do Senhor Jesus. Uma Igreja que deve a sua exis-tência, não apenas ao exemplo de Jesus, mas ao dom do Espírito, o supremo dom da misericórdia de Deus, como teremos ocasião de meditar nos próximos encontros. É nela que so-mos chamados, antes de mais, a fazer a experiência determinante dos discípulos, a deixar-nos encontrar pela misericórdia de Deus que dá confiança, alegria e força à nossa vida e nos coloca, também nós, ao serviço da reconciliação e da paz.
Era necessário que os primeiros discípulos fizessem a experiência pessoal de insufici-ência e de pecado, bem como do amor reconciliador de Deus em Jesus, para que se dessem conta que a entrada no Reino de Deus é um dom gratuito e não uma conquista dos mais espertos, dos mais poderosos, ou dos mais santos. Só assim se deixa espaço para a ação li-bertadora e regeneradora do Espírito de Deus que nos renova. Era necessário também para que percebessem que o que carateriza a Igreja do Senhor é, antes de mais, o local do encon-tro dos homens com a misericórdia de Deus.
Esta é a nossa Igreja, hoje, aqui em Setúbal, mas igualmente espalhada pelo mundo. Esta deve ser a casa da misericórdia, do acolhimento, da solidariedade, do perdão. Ao entrar essa porta das nossas igrejas de pedra, onde se reúne a Igreja de pessoas, ou quem entra nos nossos centros paroquiais ou nas nossas outras obras, deve sentir este perfume do cari-nho de Deus, antes de qualquer julgamento, acusação, ou assunto a tratar. E que não fa-çamos que alguém se sinta dela excluído. As portas da misericórdia, que abrimos no início deste ano jubilar nas nossas igrejas e no nosso coração, devem estar sempre escancaradas para acolher, mais do que os santos, aqueles que mais necessidade têm do perdão. É isso que Deus espera que nós, que fazemos a experiência do seu amor misericordioso.







Catequeses quaresmais verdadeiras
 Escolas de Fé!



sexta-feira, 19 de fevereiro de 2016

Início do 2.º semestre 2016






 Vamos  dar início ao 2º semestre da formação da Escola da Fé, será já no próximo dia 24 de Fevereiro, com as cadeiras de Protologia - Escaltologia e  Doutrina Social da Igreja. Os formadores serão:

Pólo  de Almada: - Pe. Rui Gouveia e  Henrique Matos.
                           
Pólo de Palmela-Sesimbra: - Pe. José Abreu e Pe Luís Manuel Ferreira.

Pólo de Seixal: - Pe. Casimiro Henriques e  Pe. Pio Finato.

A Comissão Diocesana agradece desde já a colaboração e disponibilidade dos  formadores, para a transmissão e aprofundamentos destas matérias, invocando para todos a iluminação do Espírito Santo.

Bem Hajam!
Pela Comissão Diocesama
Graça Pacheco



Quaresma: tempo de autenticidade, vitalidade, solidariedade


A todos os membros da comunidade diocesana de Setúbal


 Com a celebração das cinzas, damos início, nesta Quarta feira, ao tempo da Quaresma, que nos conduzirá à festa da Páscoa, comemoração da morte e ressurreição do Senhor Jesus. 
 Este é um tempo muito especial, durante o qual Deus nos convida a tomar mais a sério a vida, em todas as suas dimensões, buscando ser coerentes e honestos, afastando aquilo que nos destrói e destrói as relações com aqueles que nos rodeiam e caminhando pela via da verdadeira liberdade, alegria e fraternidade.

 É tempo para deixar-nos iluminar pela Palavra de Deus, que nos leva ao contato com Ele na oração pessoal, em família e com a comunidade paroquial.
 É tempo de deixar de fora o supérfluo, que tantas vezes atrapalha e torna fútil e egoísta a nossa vida. Aquilo que podemos poupar, também com esforço e privação, faz bem a nós próprios e é precioso para ajudar quem não tem o que é necessário para a vida.
 Neste ano jubilar, somos particularmente convidados a abrir-nos ao Coração misericordioso do nosso Deus, no sacramento da reconciliação, para acolher o seu perdão e deixarnos renovar pela força do seu Espírito.
 Para ajudar-nos neste caminho de renovação, devemos ter sinais concretos em cada pessoa, em cada família, em cada paróquia e na diocese. Ao nível da diocese, estão em evidência três sinais, para os quais vos convido:
           Tomar parte numa das peregrinações jubilares já anunciadas pelas paróquias, vigararias ou movimentos;
           Participar nas catequeses quaresmais, que terão lugar aos domingos à tarde, até ao domingo de Ramos, segundo o programa já divulgado;
           Contribuir economicamente para ir ao encontro das necessidades da nossa diocese e do mundo, através da renúncia quaresmal. Este ano, a importância recolhida nesta renúncia da diocese será destinada, em partes iguais:
-       às obras do Centro Paroquial da Comporta, que se encontra em fase de conclusão;
-       aos refugiados que fogem dos conflitos e que contam com a nossa ajuda para reconstruírem a sua vida e a das suas famílias.

 Peço para todos a bênção do Senhor, que abra o nosso coração ao Seu Amor Misericordioso e nos conduza por caminhos de autenticidade, alegria fraterna, solidariedade e paz.   Fraternamente, no Coração do Senhor,

                                                 + José Ornelas Carvalho

                                                         Bispo de Setúbal




terça-feira, 16 de fevereiro de 2016

Viver a Quaresma

Caros irmãos e amigos,

Nesta pausa entre os dois semestres e ao longo da Quaresma vamos indicando e sugerindo a leitura das mensagens e catequeses que os nossos Pastores preparam para nos ajudarem a caminhar melhor para a Celebração da Páscoa de Jesus.

Mensagem Quaresmal do Papa Francisco




http://pt.radiovaticana.va/news/2016/01/26/mensagem_do_papa_para_a_quaresma_texto_integral/1203793


Boa reflexão e muitos frutos de conversão.
Pela Comissão Diocesana
Graça Pacheco



sábado, 13 de fevereiro de 2016

O PRIMEIRO SEMESTRE, TERMINOU!


       

Deus faça florescer em nós a Vida da sua Palavra. 

Chegamos ao fim das aulas do primeiro semestre! 

Queremos agradecer aos Párocos que motivaram os seus paroquianos à participação, aos Padres responsáveis pelos Pólos de Formação, aos formadores que se disponibilizaram para transmitir e aprofundar as matérias e a todos os que aceitaram e divulgaram o convite e proposta de formação, pois: "sabemos que há uma única missão da Igreja de Deus, e cada cristão baptizado tem um papel vital nesta missão. Os vossos dons de fiéis leigos, homens e mulheres, são múltiplos, tal como é variado o vosso apostolado; e tudo o que fazeis destina-se à promoção da missão da Igreja, garantindo que a ordem temporal seja permeada e aperfeiçoada pelo Espírito de Cristo e orientada para a vinda do seu Reino." Papa Francisco (Seul 16/08/2014) 


Um grande BEM HAJA a todos!
Pela Comissão, 
Graça Pacheco