sábado, 27 de fevereiro de 2016

D. José Ornelas Carvalho



  CATEQUESES QUARESMAIS


Deus Misericordioso e Benevolente Ex 33,18-34,9

Leitura do Livro do Êxodo

18 Moisés disse a Deus: «Mostra-me a tua glória.»
19 E Deus respondeu: «Farei passar diante de ti toda a minha bondade,
e proclamarei diante de ti o nome do Senhor.
Concedo a minha benevolência a quem Eu quiser,
e uso de misericórdia com quem for do meu agrado.»
20 E acrescentou: «Mas tu não poderás ver a minha face,
pois o homem não pode contemplar-me e continuar a viver.»
21 O Senhor disse: «Está aqui um lugar próximo de mim;
conservar-te-ás sobre o rochedo.
22 Quando a minha glória passar, colocar-te-ei na cavidade do rochedo
e cobrir-te-ei com a minha mão, até que Eu tenha passado.
23 Retirarei a mão, e poderás então ver-me por detrás.
Quanto à minha face, ela não pode ser vista.» …
34, 5 O Senhor desceu na nuvem e, passando junto dele,
pronunciou o nome do Senhor.
6 O Senhor passou em frente dele e exclamou:
«O Senhor! O Senhor!
Deus misericordioso e benevolente,
lento para a ira e cheio de ternura e de fidelidade,
7 que mantém a sua graça até à milésima geração,
que perdoa a iniquidade, a rebeldia e o pecado,
mas não declara inocente o culpado
e pune o crime dos pais nos filhos, e nos filhos dos seus filhos
até à terceira e à quarta geração.»
8 Moisés curvou-se imediatamente até ao chão
e prostrou-se em adoração, 9 dizendo:
«Se, entretanto, alcancei graça aos teus olhos, ó Senhor,
vem, por favor, caminhar no meio de nós, pois este é um povo de cerviz dura.
Mas perdoa-nos as nossas iniquidades e os nossos pecados e aceita-nos como propriedade tua.»
Palavra do Senhor


JUBILEU DA MISERICÓRDIA
Catequeses de Quaresma - 1
Setúbal, 2016

I O DEUS DA JUSTIÇA E DA MISERICÓRDIA

Neste tempo de quaresma, durante o ano santo da misericórdia que estamos a viver, todos somos convidados a dar espaço e especial atenção ao dom que estes tempos repre-sentam para cada um de nós, para as nossas famílias e comunidades, para toda a Igreja. De facto, não queremos que este tempo de graça passe pela nossa vida apenas como ritual que se realiza com um certo folclore que componha uma aparência externa de piedade, deixan-do tudo na mesma nos nossos sentimentos e atitudes.
Daí nasceu esta iniciativa das catequeses quaresmais. Procuraremos aprofundar o sen-tido deste tempo quaresmal e do apelo do papa para que nos deixemos fascinar a transfor-mar pelo rosto misericordioso de Deus.
Da minha parte, iniciando o serviço de bispo entre vós, achei muito importante come-çar uma reflexão sobre este tema fundamental e partilhá-lo convosco, à luz da Palavra de Deus. Desejaria muito que este fosse o nosso caminho na construção da nossa Igreja de Se-túbal: caminhar à luz da Palavra de Deus, confortados e animados pelo seu Coração de Mise-ricórdia.
Hoje, a nossa atenção dirige-se às bases da misericórdia, procurando o rosto do nosso Pai, o Senhor e Criador, deixando-nos guiar pela palavra e exemplo dos profetas e sobretudo de Jesus. É Ele quem conhece o Pai e no-lo dá a conhecer. Nas suas palavras e nos seus ges-tos, descobrimos, em forma humana o Coração de Deus.

1. O Criador e Senhor do Universo e da História
1.1 O homem no projeto de Deus

A Bíblia abre-se com o quadro solene da criação, oferecendo a imagem de Deus como Criador e Senhor do Universo. Pela sua Palavra, ele domina todo o que existe e torna possí-vel a vida sobre a terra. Olhando para a natureza, o homem inteligente sente-se, ao mesmo tempo maravilhado e insignificante perante a manifestação da majestade e do poder de Deus, como canta o autor do Salmo 8:
Senhor, nosso Deus, como é admirável o teu nome em toda a terra!...
Quando contemplo os céus, obra das tuas mãos, a Lua e as estrelas que Tu criaste:
que é o homem para dele te lembrares, o ser humano, para dele te ocupares?(Sl 8,1-5)

Este salmo belíssimo exprime, logo na primeira estrofe, três sentimentos complemen-tares:
a) Uma sensação de assombro, admiração e respeito, que constitui certamente a pri-meira e fundamental atitude da inteligência do ser humano perante Deus.
b) Por outro lado, o espetáculo da beleza, da grandeza e da portentosa energia que se constata no universo e na natureza mais próxima, faz-nos sentir pequenos e frágeis. Mesmo as descobertas científicas mais recentes dão-nos a percepção de que estamos apenas comeÇando a vislumbrar a grandeza do universo em que estamos inseridos, sentindo-nos insigni-ficantes e até temerosos perante tal maravilha.
c) A partir destes, surge um terceiro sentimento de encantada surpresa: o carinho de Deus para com o ser humano: "que é o homem para dele te lembrares, o ser humano, para . Se a beleza e a grandeza do universo fazem entrever a majestade subli-dele te ocupares?"me e fascinante de Deus e o seu poder, o salmista sente-se particularmente fascinado pela atenção e o carinho de Deus para com a criação e sobretudo para com a sua criatura prefe-rida, o ser humano. Um ser frágil, mas querido por Deus, como uma criança que nasce nas nossas famílias: não é autossuficiente, não entende nem sabe exprimir-se como os adultos, mas é o centro da atenção, dos cuidados e da ternura de todos os que a rodeiam.

1.2 Um homem frágil, imperfeito e pecador

Mas nem sempre a imagem de Deus é assim compreendida e acolhida. O sintoma mais profundo da limitação humana é precisamente a incapacidade de entender e inserir-se nes-se projeto de Deus. Os textos sobre o pecado, que encontramos igualmente nas primeiras páginas da Bíblia (cf. particularmente Gn 3-4), dão-nos bem a ideia dessa realidade imperfei-ta em que nós todos vivemos.
Estes textos não são a história das origens do mundo e da vida e menos ainda pre-tendem falar de um mundo criado perfeito por Deus e corrompido em seguida, pelo pecado do homem, a que, muito mais tarde, se começou a chamar "pecado original". Estas narra-ções, que representam uma forma muito profunda de pensar sobre as realidades fundamen-tais da vida, não nos vêm dar notícias de como surgiu o mundo e também não falam de "pe-cado original". O que nos dizem é que Deus está na origem deste mundo maravilhoso e que no-lo confiou, como dom fundamental, para nele vivermos, para o guardarmos e desenvol-vermos. Além disso, deu-nos também indicações (a sua Palavra, o "livro de instruções") so-bre o modo de estar neste mundo e de usá-lo sem estragar, em ordem a podermos progre-dir em harmonia e atingir a maioridade do ser humano, dentro da perspetiva do seu Criador.
Com imagens simbólicas muito sugestivas, a narração bíblica diz que Deus plantou um jardim maravilhoso e lá colocou o homem que tinha criado (como faz um papá, embevecido e enternecido com o primeiro filho que lhe nasceu!). Colocando o homem/mulher neste dom fundamental que é o mundo, Deus disse que podiam comer de tudo o que lá se encon-trava, mas que não estendessem a mão para uma árvore especialmente importante, que se encontra precisamente no centro do jardim (a árvore do bem e do mal; a árvore da totalida-de da vida).
Esta árvore não está dissimulada ou escondida num canto, mas precisamente no cen-tro da realidade existencial e diz que nós, humanos, como pessoas e como sociedade, somos maravilhosos, mas não somos a totalidade do universo, não temos a totalidade da vida, nem do conhecimento. Há que saber que há realidades que nos transcendem. Que eu, como indi-víduo, como sociedade, como humanidade, não posso determinar tudo. Que o bem e o mal, não podem ser decididos só de acordo com aquilo que eu penso, com os meus interesses ou vontades de momento. Que, na altura em que eu quiser ser o senhor e dono de tudo, vou reduzir a realidade às dimensões limitadas da minha compreensão, do meu interesse e do meu poder. Aceitar a senhoria do Senhor e do seu "livro de instruções", não é uma limitação, mas, bem pelo contrário, a forma de aceder à liberdade, à sabedoria e à vida plena de Deus; Ele que é poderoso e nos quer bem. Por isso, essa árvore da vida tem de estar sempre no  centro da realidade existencial de cada um de nós, e do nosso mundo. O primeiro aviso do "Livro de Instruções" é: não tirem Deus e o seu projeto da vossa vida, da vossa família, da vossa sociedade, pois, de contrário ficareis reduzidos à vossa insignificância. Não tentem manipula-lo pois, desse modo, não o aceitariam com Deus e Senhor e ficariam privados da sua luz, da sua força, do seu carinho.
O discurso da serpente (figura simbólica da humanidade inteligente, mas não sábia) é, à primeira vista, interessante e fascinante. Ela diz, substancialmente: Não se deixem levar por esses discursos; Deus é invejoso da vossa felicidade e quer manter-vos pequenos e sub-missos; essa é uma ideologia de escravos e de gente que não sabe ou não quer pensar. Li-bertem-se dessa submissão se querem 
deslumbre da adolescência humana, fasci-nada pelo sonho superficial da liberdade.
Na narração bíblica, este modo de pensar Deus e a sua ação leva a ver Deus como con-corrente, adversário e até inimigo da liberdade, da vida, da felicidade e realização huma-nas. O resultado da não integração das diretivas do "livro de instruções", que é a Palavra de Deus, acaba por conduzir a humanidade, à perda da dignidade – – "viram que estavam nus"e da harmonia solidária entre os humanos e entre estes e a terra. Abolindo a figura do Pai, torna-se muito mais difícil aceitar a condição de irmãos/ãs. Além disso, no relacionamento entre o homem e Deus interpõe-se uma barreira: "Ouvi o ruído dos teus passos no jardim e . O medo é a primeira manifestação da desarmonia causa-escondi-me, porque tenho medo"da pelo pecado ou afastamento de Deus. O medo é sinal de estranheza e distância, ao paço que o amor afasta o medo.
O discurso da serpente mostra que, sendo limitados, ao buscar a felicidade – aquilo que todos desejamos – tantas vezes nos enganamos. Alguns exemplos reais podem ajudar a compreender aquilo que nos diz a Palavra do livro do Génesis. Uma criança pequena gosta de brincar com tudo o que brilha e a sua curiosidade leva-a a explorar o mundo, a divertir-se e a sentir alegria e prazer com tudo isso. Os pais, que lhe querem bem, estimulam esta sede de vida e de conhecimento, mas, ao mesmo tempo, defendem o filho/a de situações perigo-sas, que podem pôr em risco a sua vida, como brincar com o fogo ou facas, ou comer exage-radamente aquilo de que gosta, mesmo que isso, no momento, constitua uma contrariedade para a criança. Aquele que se droga, busca a felicidade, mas quanto mais a busca desse mo-do, mais se aproxima da morte. Os sinais de sentido proibido e as luzes vermelhas do trânsi-to não são um atentado à minha liberdade. Dizem-me que há todos os verdes e todos os outros sentidos para circular, mas que há manobras que põem em risco a minha vida e a dos outros.
Por isso, na perspetiva bíblica, a Palavra de Deus, ou Lei de Deus (na realidade, em he-braico, este conceito não soa como "Lei", mas sim como "ensinamento, "instrução") é esse "livro de instruções" da humanidade, é a expressão do carinho de Deus para com as suas criaturas, um convite à inteligência, à sabedoria do coração, ao sucesso, à felicidade e à vida. Ao longo dos tempos, Deus foi sempre acompanhando, orientando, corrigindo e chamando de volta a humanidade, através desta Palavra, para tornar possível a vida e a história.
Pelo contrário, aquilo que chamamos pecado, é, antes de mais, uma falta de sabedo-ria, tantas vezes, uma dramática busca ilusória e egoísta da felicidade, que acaba por ter consequências graves para a pessoa e para a comunidade humana. Na realidade, buscando a própria autonomia longe de Deus que é a fonte da vida, encontramo-nos gelados e sem vida,


como os planetas mais afastados do sol, encerrados na nossa limitação e isolamento de se-res frágeis e sujeitos à lei da morte.
Isto nos faz entender uma distinção entre "pecado" e "culpa", que escapa muitas ve-zes ao nosso modo de olhar a vida. Na linguagem da Bíblia, particularmente em S. Paulo, o pecado, não se identifica simplesmente com "os pecados", os erros e faltas que cometemos dia a dia. O Pecado é essa incapacidade radical do meu ser, que não possui em plenitude a vida, em termos existenciais, morais e espirituais. É evidente que os meus erros concretos são fruto das minhas opções, mas inserem-se neste ser imperfeito que eu sou. Uma criança que vem ao mundo assume esta natureza. Se queremos utilizar esta linguagem, nasce em pecado, mas não tem nenhuma culpa de nascer assim, limitado em termos de vida, de sabe-doria, de capacidade moral. Deus sabe que somos assim, pessoas que ele criou pequenas para que cresçam, imperfeitas para que amadureçam, ingénuos para que aprendam. Somos uma humanidade a caminho e a Palavra de Deus é o guia da estrada da felicidade e da vida.


1.3 Deus e o homem frágil e pecador

É a esta luz que podemos entender a atitude de Deus para connosco. Tenhamos pre-sente, antes de mais, que, em termos reais, os nossos pecados não fazem mal a Deus dire-tamente. Ele é um Deus transcendente que nós não podemos minimamente pôr em causa, como os murros de uma criança pequena, por brincadeira ou por birra, não põem em che-que a integridade do pai. Se Deus sofre com os nossos pecados é apenas porque nos ama e não é indiferente ao mal que causamos a nós próprios, àqueles que nos amam e ao ambien-te em que habitamos. É por isso que Ele considera feito a si aquilo que fazemos aos mais pequenos. Não é simplesmente por infringir a Lei do grande Senhor de todos, mas porque infringe a ligação de amor que Ele tem com todos os seus filhos e filhas. Jesus recorda isso mesmo ao dizer: "Livrai-vos de desprezar um só destes pequeninos, pois digo-vos que os seus " (Mt 16,18). Se o anjos, no Céu, veem constantemente a face de meu Pai que está no Céunosso pecado pode afetar a Deus e fazê-lo "sofrer", é só porque Ele nos ama a todos.
Esta constatação é muito importante, quando pretendemos falar da justiça de Deus. Em primeiro lugar, tenhamos em conta que não podemos transpor para Deus os mesmos critérios que se aplicam à justiça humana. Nós temos um código penal porque nos sentimos frágeis perante o mal que nos podem causar. Os tribunais aplicam a lei como punição dos culpados e possível indemnização das vítimas, para repor a justiça e dissuadir novos delitos. Deus não precisa de usar a força contra ninguém para se defender. Por isso, não tem inimi-gos e ama mesmo os que se lhe opõem, esperando o seu regresso à razão, ao bom senso e à vida.
Há, além disso, uma grande diferença de conceitos entre a mentalidade bíblica e a nossa, no que diz respeito à justiça. O símbolo da nossa justiça é uma mulher com os olhos vendados (porque não faz distinção de pessoas), com a balança numa mão (para aferir e ponderar com exatidão os casos) e uma espada na outra mão (para punir os culpados). Tra-ta-se de uma justiça equitativa, em que a questão entre duas partes é dirimida pela aplica-ção da lei. No contexto bíblico, o fundamento da justiça é algo diferente. A justiça é uma questão relacional entre as pessoas. Justiça não significa que todos são tratados por igual, mas são tratados de acordo com aquilo que são, no contexto da relação. Uma justa relação entre pai e filho, por exemplo, não quer dizer que os dois são tratados por igual. O pai é jus-
to quando se comporta como pai e o filho é justo quando se comporta como filho, isto é, quando "faz jus", é coerente, com aquilo que é.
Quando se aplica a Deus este princípio de justiça relacional, chegamos a conclusões surpreendentes, que tantas vezes não temos em conta. Deus e Israel estão ligados por uma aliança, que foi oferecida por Deus e aceite pelo povo. Deus sabe que, nesta aliança, Israel não será sempre fiel e justo. Isso não significa que Ele vai comportar-se do mesmo modo. Ele é Deus e não homem. O que Ele mesmo revelou de si mesmo, ouvimo-lo dizer na leitura com que começámos esta reflexão: "O Senhor! O Senhor! Deus misericordioso e benevolente, (Ex 34,6). lento para a ira e cheio de ternura e de fidelidade"
Deus pronuncia estas palavras passando diante de Moisés, quando o povo tinha traído gravemente a aliança. Ele afirma solenemente que permanecerá sempre fiel, mesmo quan-do o seu povo não compreende, não dá valor, não tem sabedoria e força suficientes para manter o relacionamento a que se comprometeu. O relacionamento da aliança entre Deus santo e justo e um povo débil, pecador e frequentemente infiel só pode possa manter-se se Deus for realmente capaz de perdoar e de estender o seu braço, quando o do povo se enco-lhe. Só assim esta ligação vital pode subsistir. É assim que Deus é justo, que ao seu "faz jus"nome. Assim pois, quando se faz apelo à justiça de Deus, não se pede algo diferente da sua misericórdia e do seu amor. De facto, quando há ofensa ou infidelidade na relação, o verda-deiro amor tem de se manifestar como misericórdia. É isso que acontece sempre com Deus.
O profeta Oseias usa imagens eloquentes para falar desta fidelidade amorosa de Deus para com o seu povo. Ele compara o relacionamento da Aliança à sua própria experiência de amar uma mulher que o atraiçoa (cf. Os 1-3). O marido traído parece perder a cabeça: ame-aça destruir a amada e os seus amantes, denunciá-la e humilhá-la na praça pública, fechá-la e vetá-la ao esquecimento. Mas o amor fala mais forte e acaba sempre por tentar de novo reconstruir o carinho perdido e refazer o namoro de outrora: "conduzi-la-ei ao deserto e (Os 1,2-16). falar-lhe-ei ao coração…"
O mesmo profeta usa o relacionamento carinhoso do pai para exprimir a mesma atitu-de de Deus, feita de paixão, revolta sentida e compaixão-misericórdia, em nome da coerên-cia consigo mesmo, que é a coerência do amor:
"Quando Israel era menino, eu o amei e do Egito chamei o meu filho… ensinei-o a an-dar, tomava-o nos braços… fui para ele como quem levanta uma criancinha contra o rosto…
Mas eles afastaram-se de mim… não reconheceram que era eu quem cuidava deles… o meu povo é inclinado a afastar-se de mim…
Voltará para o Egito… A espada devastará as suas cidades…
Como poderia abandonar-te, Efraim, ou entregar-te Israel?... O meu coração dá voltas dentro de mim, comovem-se as minhas entranhas…
Não desafogarei o furor da minha cólera, não voltarei a destruir Efraim, porque sou Deus e não um homem, o Santo, no meio de ti e não me deixo levar pela ira" (cf. Os 11)
É assim o amor de Deus: um amor apaixonado e vivo, que "sofre" porque ama, se as-sim podemos exprimir-nos em termos humanos. Deus é como marido-amante fiel e pai compassivo, que não descansa enquanto não reatar os laços rompidos e não assegurar o bem daqueles que ama.
É importante dirigir a nossa atenção para estes e tantos outros textos dos profetas, pois são eles que nos revelam o verdadeiro rosto de Deus. Os profetas são pessoas que se habituaram a contatar com Deus, na oração, na reflexão, na escuta da sua voz. Têm bem clara a consciência da própria pequenez e do próprio pecado, mas fazem igualmente a expe-riência de como o amor de Deus se tornou perdão, vida e até missão. É por isso que eles revelam ao povo o coração de Deus. Um coração apaixonado pela humanidade, que cons-tantemente oferece perdão, reconciliação e renovação da vida.

2. Jesus Cristo: A misericórdia de Deus torna-se presente na terra

2.1 Deus torna-se presente entre os pequenos, doentes e pecadores

Tudo isto que os profetas experimentaram e anunciaram encontra uma expressão muito clara na pessoa do Senhor Jesus. Deus não se limita a ser o protetor da humanidade a partir da sua transcendente omnipotência. Em Jesus, o Filho, vem fazer parte deste mun-do frágil. Vem partilhar as suas alegrias e sonhos, mas igualmente os seus dramas, sofrimen-tos e morte. Ele sente como todos os humanos, a tentação das ilusões de felicidade barata, do abstencionismo cómodo e da violência destruidora. Deus não fica a ver lá do alto da sua transcendência, nem se contenta em mandar uma corda aos que pedem ajuda, mas, em Jesus, vem ele mesmo, desce ao poço da nossa pequenez e sofrimento, e carrega-nos aos ombros, porque nos ama. Literalmente, carregou o peso das nossas dores, para nos libertar e oferecer perspetivas de dignidade, de alegria e de vida.
Sendo Filho de Deus, Jesus é o herdeiro e aquele que se parece com o Pai e com o seu modo de agir. Nos seus gestos, podemos ver, em forma humana como é que Deus nos trata, a nós, suas criaturas amadas, mas também limitadas, infiéis, pecadoras. Só pelo facto de vir para este mundo, Jesus é a expressão do amor absoluto e recreador de Deus.
E, aquilo que podemos ver é surpreendente: vindo para o meio dos homens, Jesus não assume a posição de privilégio e de poder que se imaginava que devia caraterizar os envia-dos de Deus, Senhor do universo. Pelo contrário, toma lugar entre os pobres e humildes do povo e dirige a sua ação e a sua palavra renovadora, precisamente para os que sofrem, os doentes, os pecadores. Aliás, Jesus afirma que esta é especificamente a sua missão:
O Espírito do Senhor está sobre mim, porque me ungiu para anunciar a Boa-Nova aos pobres; enviou-me a proclamar a libertação aos cativos e, aos cegos, a recuperação da vista; a mandar em liberdade os oprimidos, a proclamar um ano favorável da parte do Senhor (Lc 4,18s).
Esta opção pelos pobres está longe de ser a manifestação de uma ideologia de classe, em contraposição a outras classes ou grupos sociais. Trata-se de uma opção universalizante que torna evidente que, para aceder ao favor de Deus, não há privilegiados, nem pelo poder, nem pela riqueza ou educação esmerada. Começando pelos que nunca são escutados e atendidos, Jesus mostra duas coisas: primeiro, que todos, diante de Deus são pequenos e carentes de vida e pecadores, mesmo que não se deem conta disso. Segundo, que todos têm acesso à sua misericórdia e ao seu perdão, independentemente da sua posição social ou económica e mesmo para além de considerações sobre os seus méritos morais. A todos se dirige o olhar misericordioso de Deus.
Aos olhos de Deus, ninguém tem modo de pagar o bilhete para a vida: ninguém pa-gou para entrar neste mundo e ninguém pagará para o mundo que há de vir. Só tem de tomar o transporte que lhe é oferecido de graça pela misericórdia do Pai. Nestas condições, como acontece com um Pai, no meio de um grande desastre, os gritos de um filho amado desencadeiam, com toda prioridade a "adrenalina do amor". Este é o ponto de vista de Je-sus, aquele que nos revela o coração de Deus.
O chamamento de Mateus, o publicano (Mc 2,13-17), dá-nos bem um exemplo desta inversão de valores, que escandaliza os bem-pensantes. O cobrador de impostos, deve ter pensado muitas vezes que, se algum dia encontrasse o enviado de Deus pela frente, este havia de corrê-lo a pontapés e declarar a sua maldição. Era aliás assim que o tratavam os que eram considerados mais piedosos. Mas, quando Jesus passa diante dele e, não só não o censura, mas o olha com rosto amigo e até o convida para ser dos dele e segui-lo, Mateus sente que está a viver algo de radicalmente novo naquilo que lhe tinham ensinado sobre Deus. E ficou tão contente que mandou logo preparar uma festa. E quem é que havia de convidar? Os bons e respeitáveis da cidade? Esses não poriam os pés em casa de um peca-dor para não ficarem impuros também eles. A casa encheu-se de gente como ele: prostitu-tas, publicanos corruptos e outros do género. E Jesus foi! Cá fora os bons e respeitáveis acu-savam-no de andar em muito más companhias. Lá dentro, porém, o ambiente é outro: é o retorno da dignidade, da estima, do tesouro de sentir-se amado por aquele que era conside-rado o enviado de Deus. E a vida deles mudou, porque se sentiram amados, apreciados e até enviados a anunciar e criar um mundo novo deste jeito.
Foi assim com Zaqueu, com a Madalena, e com todos os outros do primeiro grupo de seguidores de Jesus. Todos eles fizeram a experiência do fracasso dos próprios méritos, da própria justiça, das próprias forças. Quando chegou a hora da verdade, Judas atraiçoou o Mestre, Pedro negou-o e todos os outros se puseram em fuga. Paulo, o grande apóstolo apaixonado de Cristo, apesar de não o ter conhecido pessoalmente, põe neste encontro com a misericórdia de Deus o início e a base da sua vida e da sua missão. Quando era pecador e perseguia a Igreja, então é que Cristo se lhe revelou e o chamou. Por isso afirma: "Estou cru-cificado com Cristo. Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. E a vida que agora tenho na carne, vivo-a na fé do Filho de Deus que me amou e a si mesmo se entregou por (Gl 2,19-20). mim"
Este é também o caminho que nos é indicado, particularmente neste tempo de qua-resma: que façamos a esta experiência renovadora do amor misericordioso de Deus que dá nova orientação à nossa vida. Sem essa experiência, não se pode ser verdadeiramente cris-tão. Por isso, somos chamados a acolher o convite veemente que faz Paulo aos cristãos de Corinto: "Foi Deus quem reconciliou o mundo consigo, em Cristo, não imputando aos homens os seus pecados, e pondo em nós a palavra da reconciliação. É em nome de Cristo, portanto, que exercemos as funções de embaixadores e é Deus quem, por nosso intermédio, vos exor-ta. Em nome de Cristo vos suplicamos: deixai-vos reconciliar com Deus. Aquele que não co-nheceu o pecado, Deus o fez pecado por nós, para que nos tornássemos, nele, justiça de (2Co 5,19-21). Deus"
2.2 Uma Igreja de misericórdia
Assim é que começou a Igreja de Jesus. Nasceu da misericórdia do Pai revelada e tor-nada presente no Coração misericordioso do Senhor Jesus. Uma Igreja que deve a sua exis-tência, não apenas ao exemplo de Jesus, mas ao dom do Espírito, o supremo dom da misericórdia de Deus, como teremos ocasião de meditar nos próximos encontros. É nela que so-mos chamados, antes de mais, a fazer a experiência determinante dos discípulos, a deixar-nos encontrar pela misericórdia de Deus que dá confiança, alegria e força à nossa vida e nos coloca, também nós, ao serviço da reconciliação e da paz.
Era necessário que os primeiros discípulos fizessem a experiência pessoal de insufici-ência e de pecado, bem como do amor reconciliador de Deus em Jesus, para que se dessem conta que a entrada no Reino de Deus é um dom gratuito e não uma conquista dos mais espertos, dos mais poderosos, ou dos mais santos. Só assim se deixa espaço para a ação li-bertadora e regeneradora do Espírito de Deus que nos renova. Era necessário também para que percebessem que o que carateriza a Igreja do Senhor é, antes de mais, o local do encon-tro dos homens com a misericórdia de Deus.
Esta é a nossa Igreja, hoje, aqui em Setúbal, mas igualmente espalhada pelo mundo. Esta deve ser a casa da misericórdia, do acolhimento, da solidariedade, do perdão. Ao entrar essa porta das nossas igrejas de pedra, onde se reúne a Igreja de pessoas, ou quem entra nos nossos centros paroquiais ou nas nossas outras obras, deve sentir este perfume do cari-nho de Deus, antes de qualquer julgamento, acusação, ou assunto a tratar. E que não fa-çamos que alguém se sinta dela excluído. As portas da misericórdia, que abrimos no início deste ano jubilar nas nossas igrejas e no nosso coração, devem estar sempre escancaradas para acolher, mais do que os santos, aqueles que mais necessidade têm do perdão. É isso que Deus espera que nós, que fazemos a experiência do seu amor misericordioso.







Catequeses quaresmais verdadeiras
 Escolas de Fé!



Sem comentários:

Enviar um comentário